O município e a saúde mental*
Investir num programa de saúde mental, alternativo à internação em manicômios, ajuda a recuperar os direitos e a dignidade dos doentes e a deflagrar a discussão sobre cidadania e sistemas locais de saúde.Autor: Marco Antônio de Almeida
Auxiliar de Pesquisa: Fábio Maleronka Ferron
Consultor: Jorge Kayano
Investir num programa de saúde mental, alternativo à internação em manicômios, ajuda a recuperar os direitos e a dignidade dos doentes e a deflagrar a discussão sobre cidadania e sistemas locais de saúde.Autor: Marco Antônio de Almeida
Auxiliar de Pesquisa: Fábio Maleronka Ferron
Consultor: Jorge Kayano
A saúde mental durante muito tempo foi vítima do preconceito social. Isso se reflete em muitos dos tratamentos inadequados que se dispensam aos doentes. A internação em manicômios nem sempre produziu resultados efetivos na recuperação de pacientes, chegando muitas vezes a agravar a situação, afastando-os da sociedade. Instituições que deveriam auxiliar na recuperação converteram-se em casas de reclusão, que contribuem para aumentar a marginalização do doente, afastando-o do convívio familiar e social, e impedindo-o de exercer seus direitos de cidadão. As administrações municipais podem influir nesta realidade de maneira positiva, como ilustra a experiência da prefeitura de Santos, onde o programa de saúde mental vem resgatando a cidadania e a dignidade dessas pessoas, através do envolvimento da sociedade civil.
EXPERIÊNCIA
Santos-SP (419 mil hab.) implantou um programa inovador de saúde mental, seguindo as tendências que rejeitam o isolamento dos doentes em instituições manicomiais fechadas, a partir da intervenção na Casa de Saúde Anchieta, decretada em maio de 1989.
Diante de denúncias de maltratos e da morte bárbara de dois internos, a prefeitura resolveu inspecionar a instituição. Uma comissão, composta por técnicos da Secretaria da Saúde, pela Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, pela OAB, entidades da sociedade civil, imprensa, rádio e TV, abriu as portas do Anchieta e tornou pública a sua brutal realidade: excesso de pacientes, falta de higiene e de acompanhamento médico adequado, etc.
Diante dessa situação calamitosa, a prefeitura decretou a imediata intervenção no hospital psiquiátrico. O proprietário entrou por duas vezes com mandados de segurança obtendo liminares de reintegração, mas em ambos os casos o Tribunal de Justiça do Estado revogou a decisão e deu ganho de causa à prefeitura. No período de vigência das liminares foi montado um esquema de vigilância permanente no manicômio.
A reação da população, que poderia ter sido de repulsa, foi de apoio à ação da prefeitura graças a seu forte apelo humanitário. O impacto da intervenção gerou um movimento de aglutinação em torno da questão da saúde mental, reunindo os familiares dos doentes, técnicos da área, além de pessoas não-qualificadas tecnicamente mas que queriam prestar seu apoio e solidariedade __ artistas, professores, cidadãos. A partir dessa rede de recursos humanos, estruturou-se um programa para dispensar o uso de manicômios na cidade.
Este desafio possuía exemplos pioneiros, sendo o mais conhecido o trabalho de Franco Basaglia e sua equipe na cidade italiana de Trieste. O programa de saúde mental de Santos, embora inspirado numa experiência européia, buscou respostas para as especificidades da realidade brasileira. Nesse aspecto, levou em conta a estreita correlação entre a doença e a marginalidade econômica e social de boa parte dos pacientes.
Para a implementação do programa foram adotadas duas linhas de ação. Em primeiro lugar, montou-se uma rede de serviços alternativa ao manicômio. Foram criados os Núcleos de Apoio Psico-Social (NAPS), ambulatórios que funcionavam sem interrupção, permitindo a liberação gradual dos pacientes através de acompanhamento psiquiátrico fora da instituição. Os NAPS ofereciam um processo terapêutico capaz de debelar a crise e permitir a reintegração social do doente, proporcionando inclusive abrigo temporário aos pacientes em situação de crise, impossibilitados de permanecerem em suas casas.
Com a implantação do Programa de Saúde Mental, houve um processo de liberação gradual dos doentes que estavam em condição de receber acompanhamento fora da instituição: dos 531 pacientes existentes em 1989, menos de 80, considerados crônicos ou originários de outros municípios, permaneciam internados em 1992.
A segunda linha de ação procurou oferecer condições para os doentes mentais viverem em sociedade, usufruindo plenamente seus direitos de cidadania. Para tanto, foi necessário um trabalho global com a comunidade, preparando-a para aceitar estas pessoas com suas particularidades, desmistificando a aura que as cercava. Nesse sentido, o Projeto TamTam foi o que mais chamou a atenção da mídia, e contribuiu para a criação de uma opinião mais esclarecida e tolerante em relação à loucura.
O Centro de Convivência TamTam foi instalado na Casa de Saúde Anchieta para funcionar como uma cooperativa que preparava os pacientes recuperados para reintegrá-los socialmente, promovendo oficinas de bijuterias, estamparia, marcenaria, elétrica, mecânica, papelaria, pintura e teatro. Os produtos (camisetas TamTam, anéis, brincos, postais) foram comercializados e a renda revertida para os pacientes. Transferiu-se para o Centro de Reabilitação Profissional no início de 1991, mediante um convênio da Secretaria de Higiene e Saúde com o INSS.
Tornou-se um local de troca de experiências e de muita criatividade, marcado pelo convívio de técnicos, pacientes psiquiátricos, estudantes especiais, deficientes físicos e integrantes da comunidade.
O teatro desempenhou um papel fundamental na recuperação de muitos doentes, não só através do trabalho corporal, como também na redação e representação de textos. Esse processo revelou verdadeiros talentos, o que facilitou a montagem de um grupo de teatro dentro do próprio hospital.
Com a aquisição de um aparelho de som e um microfone, iniciou-se uma programação diária de rádio dentro do hospital, onde um paciente relatava notícias da instituição e recados internos. Animados com o sucesso da experiência, seus idealizadores montaram uma equipe formada por alguns pacientes que possuíam maior desenvoltura de voz, locução e imitação, procurando tornar público o programa. Foram convidados alguns adolescentes para integrar a equipe na área de assessoria técnica. O programa foi ao ar pela primeira vez no dia 5 de novembro de 1990, pela Rádio Universal.
A curiosa combinação de "excluídos" – doentes mentais e adolescentes – funcionou extremamente bem. A rádio adquiriu um perfil roqueiro, tocando músicas que nenhuma outra emissora possuía, graças aos discos fornecidos pelos jovens (muitos deles importados). Oito meses depois o programa passou a integrar a programação da Rádio Clube Am com grande sucesso. Hoje é um dos mais conhecidos da Baixada Santista.
No entanto, apesar do trabalho de conscientização da comunidade, o doente mental entrava em condições desiguais no mercado de trabalho, já tão afetado com o desemprego. Para atingir ao menos uma eqüidade parcial nas relações sociais, foram implementadas atividades de geração de renda.
Além de trabalhos artesanais, os pacientes participavam na fabricação de blocos para a construção civil, na reciclagem de lixo e em serviços de jardinagem. Estas atividades, permitindo aos indivíduos retomarem a luta pela própria sobrevivência, auxiliaram no processo de reintegração à sociedade.
DIFICULDADES
Algumas dificuldades devem ser consideradas. O crescimento da rede de serviços de atenção à Saúde Mental não se deu de maneira sincrônica. O fechamento de grande número de leitos psiquiátricos não foi acompanhado, na mesma proporção, pela criação de serviços substitutivos à internação.
Hoje há dificuldades em completar as equipes dos Centros de Saúde e fixá-las nos serviços; o número de equipamentos intermediários é insuficiente; há déficit de leitos para internação por conta da crise do Sistema Único de Saúde. Muitas vezes o atendimento às urgências depende exclusivamente dos Hospitais Universitários; há lentidão e dificuldade para incorporar usuários e familiares como co-participantes do processo de implantação do Modelo e reguladores dos serviços prestados.
Outro problema a ser enfrentado é o fato de que muitos dos pacientes na área de Saúde Mental foram institucionalizados e tornados crônicos pelo processo de atendimento baseado exclusivamente na internação. Pelo tempo que esses pacientes estão vivendo nos hospitais, torna-se impossível retirá-los e implantar uma nova forma de tratamento. Há a necessidade de construção de uma rede hospitalar que atenda esse tipo de paciente.
Uma última dificuldade diz respeito ao porte do município e aos recursos necessários para a implantação de um programa do gênero, que talvez estejam além das possibilidades da prefeitura. Uma alternativa pode ser a cooperação entre municípios vizinhos, articulando um programa regional.
RESULTADOS
A participação da comunidade permeada com a ação municipal é fundamental para a alteração dos mecanismos institucionais e funcionais que compõem o quadro da Saúde Mental no País.
É importante destacar que o sucesso do programa de Santos deriva da adaptação de um modelo básico às características e especificidades locais. A prefeitura agiu de acordo com as suas condições e possibilidades, utilizando criatividade e buscando recursos financeiros através de parcerias e convênios.
Houve ousadia na implementação de uma idéia que ainda enfrentava muitas resistências. A Saúde Mental foi um ponto estratégico para ampliar os debates em torno da saúde pública no Brasil, trazendo à tona a discussão sobre cidadania e sistemas locais de saúde.
O objetivo de um programa municipal de Saúde Mental é melhorar a eficácia na assistência à população com problemas de saúde mental, num contexto de Saúde Integral, não-discriminatório, através de recursos extra-hospitalares e comunitários. A perspectiva é alterar o modelo baseado principalmente no hospital como instrumento de assistência à Saúde Mental, na medida em que este modelo foi mundialmente reconhecido como ineficaz. O programa implantado em Santos procura seguir as três diretrizes do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a reestruturação nessa área: desospitalização, desinstitucionalização e resgate dos direitos de cidadania dos usuários.
O modelo propõe, a curto prazo, garantir as condições para que a assistência seja realizada em equipe, consolidando e tornando mais complexos os serviços já existentes e, a médio prazo, definindo uma política de ampliação da assistência.
Cada município deve buscar articular um modelo de assistência completo, revendo as práticas existentes e avaliando sua eficácia. Isto implica construir uma rede de serviços regionalizada, descentralizada gerencialmente, hierarquizando o atendimento de acordo com o tratamento necessário (serviços ambulatoriais, serviços intermediários extra-hospitalares e internação, realizada apenas em último caso).
* Publicado originalmente como DICAS nº 65 em 1996