O objetivo da prefeitura, ao elaborar leis de uso e ocupação do solo, deve ser democratizar o acesso à terra e à qualidade de vida.Autor: José Carlos Vaz
Consultora: Raquel Rolnik
Assistente de pesquisa: Renato Cymbalista

O objetivo da prefeitura, ao elaborar leis de uso e ocupação do solo, deve ser democratizar o acesso à terra e à qualidade de vida.Autor: José Carlos Vaz
Consultora: Raquel Rolnik
Assistente de pesquisa: Renato Cymbalista

A legislação de uso e ocupação do solo é fundamental para a vida urbana, por normatizar as construções e definir o que pode ser feito em cada terreno particular, interfere na forma da cidade e também em sua economia. Mas, em geral, trata-se de um conjunto de dispositivos de difícil entendimento e aplicação, e as leis não são muito acessíveis aos cidadãos por seu excesso de detalhes e termos técnicos. O grande nível de detalhe dificulta também a fiscalização que se torna praticamente impossível de ser realizada, deixando a maioria da cidade em situação irregular. Além disso, raramente fica explicitado seu impacto econômico na distribuição de oportunidades imobiliárias.

Em muitos municípios, a legislação de uso e ocupação do solo é uma "caixa preta", que poucos conhecem profundamente e que, em não raros casos, é usada para atender interesses particulares. Por má fé, desconhecimento ou casuísmo, vai sendo alterada sem nenhuma preocupação com a totalidade. O resultado é uma legislação cada vez mais complexa e abstrata, que acentua as desigualdades existentes na cidade.

Um governo comprometido com a promoção da cidadania e da qualidade de vida não pode se permitir conviver com uma legislação de uso e ocupação do solo nessas condições, sob pena de ver crescerem as desigualdades sociais enquanto o capital imobiliário se apropria dos destinos da cidade.

CONCEPÇÃO TRADICIONAL

O instrumento técnico-jurídico central da gestão do espaço urbano é o Plano Diretor, que define as grandes diretrizes urbanísticas. Tradicionalmente, estas diretrizes incluem normas para o adensamento, expansão territorial, definição de zonas de uso do solo e redes de infra-estrutura. Para grande parte das cidades, no entanto, o Plano Diretor, quando existe, "fica na gaveta". É um documento distante do dia a dia ou por ser elaborado apenas para cumprir uma formalidade ou por desrespeito às suas normas por interesses políticos.

Tradicionalmente, a legislação de uso e ocupação do solo concentra-se em normas técnicas de edificações e no zoneamento da cidade. A normas de edificações procuram estabelecer parâmetros detalhados sobre todos os aspectos das construções, incluindo tanto a relação da edificação com seu entorno (recuos, número de pavimentos, altura máxima) quanto a sua configuração interior (insolação, ventilação, dimensão de cômodos). A virtual impossibilidade de dar conta do excessivo nível de detalhe, em muitos casos, joga na ilegalidade a maior parte das edificações.

O zoneamento é uma concepção da gestão do espaço urbano baseada na idéia de eleger os usos possíveis para determinadas áreas da cidade. Com isso, o que se pretende é evitar convivências desagradáveis entre os usos. A cidade é dividida em zonas industriais, comerciais, residenciais, institucionais e em zonas mistas, que combinam tipologias diferentes de uso. Em alguns casos, esse zoneamento da cidade inclui várias categorias para cada um dos tipos de zonas. Essas categorias diferenciam-se, normalmente, em termos de adensamento dos lotes (pela regulamentação do percentual máximo da área dos terrenos que pode ser edificada, do número de andares das edificações ou da área máxima construída).

A determinação dos tipos de usos, muitas vezes, acontece em função de usos já consolidados, ou seja, a legislação apenas reconhece esses usos. Nesse caso, seu papel de direcionar a ocupação da cidade fica resumido à legitimação do espaço construído, independentemente da dinâmica, ainda que perversa e excludente, que tenha definido esta construção.

O zoneamento tem impacto direto sobre o mercado imobiliário. A adoção de um zoneamento rígido leva à criação de monopólios fundiários para os usos: por exemplo, se só há um lugar para a instalação de estabelecimentos comerciais, essas áreas disponíveis serão automaticamente valorizadas. As restrições do zoneamento podem inviabilizar empreendimentos e impedir a expansão de algumas atividades econômicas.

Com todo esse impacto sobre o mercado imobiliário, e o fato de a legislação ser detalhista e tecnicista, praticamente incompreensível para os não-iniciados, é muito fácil que a lei de zoneamento se transforme em moeda de troca. Empreendedores imobiliários, interessados na mudança de classificação de uma determinada área, chegam a pagar muitos milhares de dólares para que ela seja efetivada.

Além disso, essa concepção aumenta a segregação social: os ricos tendem a se concentrar em áreas legisladas de forma mais restritiva (normalmente são áreas residenciais, com pouco tráfego, com tamanhos mínimos de lote e padrões de adensamento que inviabilizam moradias de baixo custo). Aos pobres são reservadas áreas cujas características de zoneamento, ao mesmo tempo em que viabilizam a ocupação de baixo custo, não lhe conferem qualidade de vida. Agravando o quadro, os governos municipais tendem a fiscalizar mais fortemente a ocupação das áreas mais nobres da cidade, preservando assim suas características de áreas privilegiadas. As áreas mais pobres não quase não recebem atenção, e seu padrão de ocupação e de edificações afasta-se das exigências mínimas da legislação, em função das necessidades e capacidades econômicas de seus moradores.

A existência desses problemas não significa que seja melhor não dispor de legislação urbanística. Sem nenhuma regulamentação, a competição livre das formas de ocupação simplesmente estimula a proliferação das mais lucrativas, com graves prejuízos para a qualidade de vida e reduz as oportunidades de acesso à terra e à cidade..

NOVAS TENDÊNCIAS

Por conta das limitações dos instrumentos tradicionais de regulação do uso e ocupação do solo, têm surgido nos últimos anos novas abordagens de regulação da ocupação. Estas novas visões apresentam três pontos centrais:

a) Rompimento da visão tradicional da cidade fragmentada em zonas especializadas: trata-se de abandonar a concepção da cidade enquanto "máquina de morar e produzir", onde cada área tendo usos claramente diferenciados, exigindo uma ênfase na infra-estrutura de transporte que suporte o deslocamento dos cidadãos das áreas residenciais para as áreas de trabalho. Esse conceito é substituído pela valorização dos aspectos humano, dando lugar especial às relações de vizinhança, entendendo a cidade enquanto espaço de prática da cidadania e convívio social. Em termos concretos, significa adotar uma regulamentação do espaço urbano menos rígida, mas que garanta a qualidade de vida e permita que a legislação acompanhe o processo de transformação contínua vivido pela cidade, que normalmente valoriza a multicentralidade e mistura de usos.

b) Desregulamentação e simplificação da legislação: têm se buscado construir instrumentos mais simples de controle do uso e ocupação do solo. A tônica desses novos instrumentos é que a legislação explicite seus objetivos e que o acesso à terra urbana seja democratizado. Assim, procura-se evitar o excesso de regulamentação em itens menos relevantes, especialmente quanto às normas de construção.

c) Mecanismos de apropriação social dos benefícios da urbanização: ao mesmo tempo em que se abandona o detalhamento excessivo da legislação (por exemplo, o zoneamento de uma quadra ou a altura do batente de uma porta ou da caixa de correio), procura-se incorporar ferramentas que assegurem a preservação dos direitos coletivos e o interesse da cidade. Em termos práticos, isto significa adotar mecanismos nos quais o empreendedor assuma os ônus dos impactos gerados pelo empreendimento. Exemplos desses mecanismos são a cobrança pelo direito de construir área adicional à do terreno (compensando a sobrecarga gerada pelo empreendimento sobre a infra-estrutura urbana), responsabilização do empreendedor pela resolução dos transtornos gerados pelo empreendimento (por exemplo, construção de vias de acesso ou passarelas, isolamento acústico) e definição de áreas passíveis ou não de adensamento (para otimização do uso da infra-estrutura urbana). É evidente que as construções populares e certas atividades geradoras de emprego e renda podem ser isentadas deste ônus.

O QUE FAZER?

A revisão da legislação urbanística deve ser entendida como um processo complexo, exigindo planejamento e gerenciamento específicos. A experiência tem mostrado que é importante envolver todos os setores sociais interessados: um plano diretor ou outras peças da legislação urbanística que não são debatidas com a sociedade dificilmente encontram apoio político para sua aprovação e implementação. Assim, é aconselhável envolver a sociedade desde a etapa de diagnóstico e avaliação da legislação existente. Nesta etapa, é interessante fazer um levantamento do que "incomoda" na cidade: prédios, enchentes, desmoronamentos, contaminação, poluição sonora, etc.

Uma vez realizada essa etapa, define-se a abrangência da revisão da legislação. Quase sempre ela começa com a elaboração do Plano Diretor (ou sua revisão), definindo as diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento do município. Trata-se, portanto, de um instrumento de política urbana geral. A revisão do Plano Diretor deve, no campo da política imobiliária, incentivar a oferta de residências de padrão médio e padrão popular. Deve incorporar uma política fundiária, que combata a retenção de terrenos em área de adensamentos desejados e desestimulem a ocupação em outras áreas (seja por restrições ambientais, seja para evitar demanda por expansão da infra-estrutura). Para muitas cidades, é necessário promover a regularização legal de áreas de baixa renda.

Baseado nos objetivos e macro-diretrizes urbanísticas proposta no Plano Diretor, deve-se fazer o detalhamento da legislação de uso e ocupação do solo.

Do ponto de vista formal, o Plano Diretor pode conter a própria legislação de uso e ocupação do solo. Dessa forma, o Plano já fica auto-aplicável.


 


* Publicado originalmente como DICAS nº 77 em 1996.
Dicas é um boletim voltado para dirigentes municipais (prefeitos, secretários, vereadores) e lideranças sociais. Atualmente, seu acervo está publicado no site do Instituto Pólis.

`