Do que trata o texto: O texto trata da a gestão das diferenças entre as diversas realidades espaciais do município.

Disponível em: Publicado originalmente como DICAS nº 44Fonte: Instituto Pólis
Autor: José Carlos Vaz/ Entrevistado: Helder Leal da Costa
Data de publicação: 1995


Para os municípios muito extensos, muito populosos ou com distritos afastados, a gestão das diferenças entre as diversas realidades espaciais do município, com demandas desiguais da população, tende a ser um problema administrativo e político. Para municípios nessas condições, é necessário dividir de alguma forma as responsabilidades e atividades da prefeitura.

DESCENTRALIZAR OU DESCONCENTRAR?
Há duas alternativas possíveis quando se pretende, de alguma forma, retirar parte das atribuições do nível central de governo: a desconcentração e a descentralização. A desconcentração é uma forma de regionalização na qual a instância central de poder transfere parte de suas atribuições de execução de atividades para órgãos regionais, que não dispõem de poder para decidir sobre prioridades ou sobre o planejamento dos serviços. A instância central conserva o poder e a dotação orçamentária para decidir sobre políticas, prioridades e alocação de recursos humanos. As decisões continuam centralizadas, mas são executadas longe do centro.

As soluções de desconcentração de atividades mais difundidas envolvem a criação de administrações regionais, normalmente encarregadas da execução de pequenos serviços de manutenção e de obras de menor porte, ou a instalação de órgãos administrativos para facilitar o acesso da população às repartições municipais.

A descentralização, por sua vez, implica a transferência efetiva de poder decisório para os agentes locais da administração municipal. Significa, portanto, que os órgãos regionais têm autonomia, dentro de limites estabelecidos, para formular políticas locais, estabelecer prioridades e planejar o atendimento das demandas. Entretanto, a simples divisão de uma cidade em unidades independentes entre si prejudica a implantação de políticas públicas abrangentes. Ou seja, a descentralização, mantendo-se a unidade do município, sempre será parcial: o governo transfere uma parcela do poder de decisão que pode ser maior ou menor, nunca total. A descentralização pode abranger, além da execução de atividades, as decisões referentes à formulação de políticas, à definição de prioridades, ao planejamento operacional, à normatização e ao controle. Quanto maior for o grau de transferência dessas atribuições, maior será o grau de descentralização implantado.

Não é conveniente que todas as decisões, mesmo as de caráter mais operacional, sejam tomadas por órgãos centrais da prefeitura. Essa inconveniência se dá não somente do ponto de vista da racionalidade administrativa, mas também em termos políticos, para as administrações municipais comprometidas com o desenvolvimento e consolidação da cidadania e com a democratização do Estado.

EXPERIÊNCIA

Em Campinas-SP (842 mil hab.) o Programa de Descentralização foi implantado no primeiro dia da gestão 1993-1996.

Até 1992, a maior parte das ações (e praticamente todas as decisões) da prefeitura estavam a cargo de órgãos centralizados. As Administrações Regionais existentes assumiam apenas atividades operacionais em serviços de manutenção urbana como limpeza pública e tapa-buraco.

Para a formulação do programa, o governo municipal inspirou-se em experiência semelhante implantada em Barcelona (Espanha) depois de anos de preparação, e no projeto formulado pela prefeitura de São Paulo-SP na gestão 1989-1992, que não chegou a ser implantado.

A prefeitura optou por uma estratégia de implantação rápida do programa, evitando gastar meses com estudos mais detalhados ou articulações políticas para garantir sua sustentabilidade. Logo no primeiro dia de governo, o programa foi implantado, alterando a estrutura organizacional e a estrutura de cargos e carreiras da prefeitura. Esta estratégia exigiria um trabalho de acompanhamento e gerenciamento do processo, ao longo de toda a gestão. O governo municipal considerou que a implantação das alterações organizacionais era o início do processo de mudança na prefeitura, rumo a uma gestão descentralizada. Foi preparado um projeto de lei, aprovado pela Câmara no final de 1992 e sancionado pelo novo Prefeito no primeiro dia de governo (posteriormente, uma nova lei iria complementar o suporte jurídico do processo de descentralização). A lei aprovada no início da gestão dividiu o município em quatro regiões, e criava o núcleo central de poder, com o Conselho de Governo e três Conselhos Setoriais (Desenvolvimento Social, Desenvolvimento Urbano e Meios Administrativos).

O Conselho de Governo para as políticas e diretrizes de âmbito municipal, com o Prefeito e todos os Secretários e Presidentes dos órgãos de Administração Indireta e os três Conselhos Setoriais, para as políticas Sociais, Urbana e Administrativas, cada um com o primeiro escalão da Administração Direta e Indireta respectiva, mais os quatro Secretários das SARs e o Secretário de Governo; quatro secretarias de Ação Regional (SARs ), uma para cada região, para o gerenciamento, planejamento de operação e execução das atividades e serviços definidos como passíveis de descentralização; a secretaria de Governo, para articular as ações de Governo, acompanhar e controlar o processo de integração e descentralização, e elaborar o orçamento do município; e Secretaria de Recursos Humanos, para coordenação das políticas de Recursos Humanos e participar do processo de integração e descentralização administrativa.

Toda a estrutura das Secretarias Setoriais permaneceu. Os níveis hierárquicos foram reduzidos, com a extinção dos órgãos em nível mais baixo. Os cargos de chefia existentes foram transformados em cargos que poderiam assumir a coordenação de projetos e programas: coordenadores, supervisores ou assessores técnicos. Com isto, a estrutura organizacional ficou mais flexível. Para que as SARs tivessem um pessoal qualificado para as atividades de gestão descentralizada, foram dotadas de dois departamentos encarregados das atividades-fim (Desenvolvimento Urbano e Desenvolvimento Social) e um departamento de meios Administrativos. Assim, as SARs foram recebendo recursos materiais e humanos que lhes permitissem assumir gradualmente as atribuições descentralizadas, contando com equipes de engenharia, habitação, educação, saúde, promoção social, compras e recursos humanos.

O núcleo do programa implantado é a presença de quatro Secretarias de Ação Regional (SARs), cada uma responsável por uma das áreas em que o município foi dividido. Cada secretaria é responsável não só pelas atividades de manutenção urbana (que continuaram sob responsabilidade das Administrações Regionais, agora subordinadas às SARs), mas também pelos equipamentos nela localizados, contando com o poder de formular políticas de âmbito local, estabelecer prioridades e resolver demandas em setores como habitação, abastecimento e cultura.

No novo modelo de gestão, as Secretarias Setoriais passaram a se responsabilizar pela normatização e pela operação de serviços e equipamentos que, por seu porte ou complexidade, digam respeito diretamente ao conjunto do município.

Juntamente com o prefeito e o secretário de governo, os quatro secretários de ação regional participam de Conselho do Governo e de todos os conselhos setoriais. A prática de constantes reuniões informais entre os secretários de ação regional para troca de experiências e articulação de ações comuns tem contribuído para superar as limitações de agilidade, próprias do caráter formal dos conselhos.

De início, os secretários de ação regional não puderam fazer muito mais que coordenar as atividades das várias administrações regionais de cada região. Nos primeiros meses de funcionamento do novo modelo de gestão, as SARs enfrentaram dificuldades de estruturação, uma vez que não possuíam ainda suporte organizacional; elas foram constituídas legalmente e imediatamente entraram em operação, no primeiro dia de governo. Em virtude disto, os primeiros meses demandaram um trabalho institucional de definição de responsabilidades e organização de equipes. A Secretaria de Governo coordenou o processo de discussão interno ao governo para detalhar o funcionamento do modelo de descentralização. Um problema dos mais delicados nesses momentos iniciais foi a definição dos limites de atuação entre as SARs e as Secretarias Setoriais. Estas se caracterizavam, em grande parte, por possuírem estruturas de execução de serviços relativamente maiores e mais atuantes que as de planejamento (exatamente aquelas que passariam a ser mais exigidas com o novo modelo). No caso das áreas de educação e saúde, o processo se tornou ainda mais complexo por tratar-se de serviços públicos executados através de redes de equipamentos. Já existia um conjunto sedimentado de normas e práticas centralizadas para sua gestão. Em outros municípios, este problema pode ser agravado pela exist6encia de uma cultura de centralização entre o funcionalismo (que, em muitos casos, pode se confundir com o corporativismo).

A estratégia adotada em Campinas mostra que a descentralização não deve ser vista como um modelo de gestão pré-definido a ser implantado de uma só vez. Na verdade, o que é possível fazer é implantar um processo de descentralização, que vai se estendendo por muitos anos e requer um acompanhamento constante e um aprendizado permanente por parte dos servidores, dos dirigentes municipais e dos cidadão. Deve ser fruto de discussão e vivência de novas situações e relações de poder. O verdadeiro objeto de intervenção são as pessoas e não o organograma da prefeitura.

RESULTADOS

Do ponto de vista gerencial, a descentralização possibilita um aumento da eficiência e da eficácia das ações do governo. É possível melhorar a qualidade de vida sem depender de grandes projetos, pois a prefeitura amplia seu poder de diagnóstico: no caso de Campinas, as SARs exerceram um papel de "lentes de aumento", conferindo visibilidade a problemas que antes não eram percebidos. Com isso, a quantidade de demandas por ações da prefeitura aumentou. Ao se implantar um programa de descentralização, é necessário contar com esse efeito, incorporando providências para a que a capacidade de intervenção da prefeitura acompanhe o crescimento da demanda. Em Campinas, a política de valorização e capacitação de recursos humanos assumiu um papel decisivo.

Sem as preocupações com o "varejo", o núcleo central de governo passa a ter condições para se ocupar de questões de caráter global e estratégico.

A implantação de núcleos regionais, responsáveis pela implantação de projetos locais e pelo contato direto com as demandas populares, favorece um relacionamento direto com os cidadãos e valoriza a organização comunitária. Torna-se possível buscar em conjunto as soluções adequadas às necessidades, quebrando o monopólio do conhecimento pelos técnicos e burocratas.

Do ponto de vista político, a descentralização aumenta a transparência das ações do governo e é positiva para o desenvolvimento da participação da população na solução dos próprios problemas. Um modelo de gestão descentralizada tende a enfrentar dificuldades com parte do Legislativo: vereadores de estilo mais próximo ao clientelismo verão este modelo como uma ameaça à sua prática política.

A descentralização pode produzir ainda outras mudanças na cultura política do município: o reforço da identidade local e a criação de vínculos de populações migrantes com a cidade em que passaram a morar.

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