Descentralizar a ação cultural do governo municipal contribui para a democratização da sociedade.Autor: Valmir de Souza
Consultor: Hamilton Faria

Descentralizar a ação cultural do governo municipal contribui para a democratização da sociedade.Autor: Valmir de Souza
Consultor: Hamilton Faria

A implantação de uma Política de Descentralização Cultural, conjugada com as outras Políticas Públicas no município, é um instrumento eficaz de democratização da cultura ao permitir que todos os cidadãos tenham acesso às atividades de formação, aos programas artísticos e aos projetos culturais. Ajuda também a promover uma maior integração com a população e a dar lugar às manifestações da comunidade local.

O QUE É

A descentralização das ações culturais da secretaria, fundação ou outro órgão de cultura é um mecanismo que visa dar transparência e visibilidade às ações de governo nesse campo, divulgando as atividades e os cursos de formação. Ao mesmo tempo, coloca à disposição da população os equipamentos públicos de cultura.

Um dos objetivos dessa política é abrir espaços para que a sociedade local e o cidadão comum participem de fóruns e da formulação de políticas e projetos culturais para a região ou bairro bem como para a gestão dos equipamentos.

Um outro objetivo é desdobrar e multiplicar a ação de secretarias e fundações ultrapassando os "templos e nichos" culturais centrais para aprofundar as relações com os diversos atores locais, como sindicatos, movimentos sociais, associações, entidades.

Com essa política, podem ser revitalizadas diversas atividades locais; podem ser valorizadas as expressões culturais das periferias das cidades; também pode ser promovido o acesso de toda a população à informação e à criação cultural, além de estimular a produção local. Outro aspecto importante é a possibilidade de se "desprivatizar" certos espaços culturais, usados, em geral, para fins clientelísticos.

EXPERIÊNCIAS

Na cidade de São Paulo-SP (9.842 mil hab.), na gestão 1989-1992, a Secretaria Municipal de Cultura implantou uma Política de Cidadania Cultural para colocar a cultura (fruição, difusão, criação do bem cultural e a participação nas decisões sobre a cultura na cidade) como direito dos cidadãos.

É nesse contexto que aparece a Ação Cultural Regionalizada. O programa, iniciado em 1991, criou treze Coordenações Regionais para atuar junto à população da cidade.

A idéia central do programa era trabalhar com os diversos movimentos e entidades (sociais, sindicais, populares, culturais), atuando em conjunto com outras Secretarias Municipais, estimulando o debate público sobre os problemas das regiões, promovendo eventos (aulas públicas, mostras culturais, fóruns, etc.), apresentando a ação cultural e a idéia de cultura como direito dos cidadãos. Essas atividades eram realizadas sempre pensando na ocupação cultural de espaços sem determinação prévia, mas havia também um trabalho conjunto com as Casas de Cultura promovendo encontros e exposições itinerantes pela cidade e incentivando a formação de fóruns regionais de cultura. (cf. Prestação de Contas 1989-1992).

Além da cultura, também eram tratados outros temas: AIDS, meninos de rua, prostituição, alimentação, ecologia, mananciais. Cada grupo apresentava suas demandas, que eram então discutidas entre agentes culturais, administradores regionais e população. A interação com a Sociedade Civil foi intensificada neste período. Apesar de o programa não ter sido implantado como uma Política de Descentralização Cultural porque a Câmara Municipal não aprovou o Projeto de Reforma Administrativa proposto pela Prefeitura, houve uma descentralização de cunho político no sentido amplo.

A experiência de descentralização da vida cultural de São José dos Campos-SP (468 mil hab.) é uma proposta do Conselho Deliberativo da Fundação Cultural "Cassiano Ricardo", aprovada em 1993 para atender o maior número de usuários em todos os setores culturais e localidades do município. Para isso, em 1994, foi criado o Departamento de Ação Cultural Descentralizada, com a função de implantar uma política de descentralização baseada em dois pressupostos: o primeiro era a definição dos locais a partir de critérios sócio-culturais, organizações coletivas, e a geografia do município; o segundo era que houvesse pelo menos um agente cultural em cada local onde funcionaria essa ação.

Esta experiência tem dado ênfase também à constituição das Casas de Cultura como marcos de referência para a população: alguns espaços foram edificados e outros foram adaptados para o fazer cultural da população local.

O importante nessa experiência é que tem se pautado por quatro diretrizes que apontam tanto para a democratização da cultura como para a democracia cultural, ampliando assim conceitos já estabelecidos:

1. a informação como direito do cidadão, potencializando a atuação dos agentes culturais também como cidadãos;
2. a formação cultural como item forte que propicia espaços mentais e físicos para a criação artística, utilizando-se as oficinas culturais;
3. a difusão visa garantir a distribuição e a circulação dos bens culturais produzidos na cidade e região;
4. a organização como um aspecto relevante da ação cultural que coloca a possibilidade de auto-gestão dos grupos, movimentos e das comunidades, bem como de seus respectivos projetos culturais.

Alguns resultados dessa experiência ajudam a visualizar o que tem sido feito:

* Formação: Cursos e palestras para formação de agentes culturais; "Arte nos Bairros" (60 oficinas)
* Difusão: apresentação de concertos, filmes, vídeos, peças teatrais (nos bairros)
* Informação: registro em vídeo e relatório das ações culturais; apoio a Fanzines dos bairros; incentivo a bibliotecas comunitárias; divulgação das atividades culturais da cidade.
* Organização: reuniões com as comunidades; apoio ao movimento Hip-hop e outros grupos; fortalecimento das comissões setoriais da Fundação Cultural "Cassiano Ricardo"; parcerias em atividades com Saúde Mental; apoio ao "orçamento participativo".
* Público atendido: de 1993 a 1995, 76.897 pessoas
* Bairros atendidos: 8
* Casas de Cultura implantadas: 3

A experiência da cidade de Belo Horizonte-MG (2.060 mil hab.) vem de uma trajetória de luta para implantar nos bairros uma ação cultural que respeitasse o que já era feito nas diversas comunidades desde a década de 70. A partir de 89, as reformas administrativas auxiliaram muito o processo de descentralização, principalmente nos setores de saúde, educação, controle urbano e obras. Foi nessa época que começou a experiência de descentralização das ações culturais, através da Secretaria Municipal de Cultura. Apesar dos vários problemas que têm surgido, muitos avanços puderam ser constatados: organização dos movimentos culturais, investimento nos grupos artísticos e a realização de projetos permanentes como o "Praça Sete Seis e Meia", o "Música de Domingo" e o "Música nas Igrejas". As discussões em torno da descentralização cultural foram consolidadas no "Plano de Ação Cultural Regionalizada" que, apesar de dar alguns nortes para essa ação, não garantia, em si, a continuidade do trabalho proposto.

A Ação Cultural Regionalizada de Belo Horizonte trouxe resultados de importância vital para a renovação e a inovação cultural no município:

Os "Circuitos Culturais Regionalizados" articulam os movimentos culturais, difundem a produção cultural local e criam espaços de convivência para a população.

Para a formação e a capacitação cultural, foram realizadas seis oficinas para grupos teatrais amadores, culminando no projeto "Usina de Teatro", com grande efeito multiplicador: os alunos retornaram o seu conhecimento teatral para as suas comunidades.

Em relação às Políticas Públicas e a Cultura, foram realizadas três experiências de destaque: "Projeto Acampados", voltado para a população sem-casa; "Projeto de Intervenção Cultural nos Alojamentos", que trabalhou com famílias transferidas de áreas de risco para alojamentos; e um projeto em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde, ligado à "Saúde Mental".

A ação cultural também trabalhou com projetos relacionados à Memória e Patrimônio. Implantou, em parceria com as Administrações Regionais, os Centros Culturais (centrais, regionais, locais e de referência ) buscando a participação, democratização e difusão artístico-cultural.

IMPLANTAÇÃO

Para a implantação de uma ação cultural descentralizada é necessária uma atividade anterior como parte do planejamento: fazer um mapeamento das regiões ou bairros e vilas, levantando dados sobre equipamentos públicos e também sobre manifestações culturais já existentes. Esta coleta de dados serve inclusive para definir prioridades da ação nos bairros.

Pode-se trabalhar com a idéia de que certos equipamentos com outra função podem ser aproveitados para atividades culturais. Por exemplo: em trabalho conjunto com a Secretaria de Educação, pode-se usar uma escola ou biblioteca pública para cursos ou oficinas (vídeo, cinema, literatura, teatro, dança, capoeira, artesanato, etc). Pode-se utilizar também os equipamentos históricos desativados, adaptando-os para as atividades: casas históricas, por exemplo, podem exercer a função de Centros Culturais. Quanto ao espaço físico, não havendo nenhum local apropriado, é importante a construção de Casas de Cultura para cada região.

Um outro aspecto importante é o trabalho integrado com outras secretarias e administrações regionais. Envolver toda a administração dá um peso maior e também mais condições para essa atuação. A administração deve definir em conjunto uma estratégia que envolva as políticas sociais do governo. O apoio das administrações regionais pode ser fundamental para o funcionamento de uma ação deste tipo.

Implantar uma política de descentralização também requer pessoas habilitadas e capacitadas para um trabalho com as comunidades locais. Este agente cultural precisa saber ouvir as aspirações e perceber as carências, discutindo-as com o público. Sem este agente, corre-se o risco de se elaborar um projeto descolado das "fidelidades locais", com um viés muito academicista. Essas comunidades "sem voz" na sociedade têm uma maneira própria de comunicar suas necessidades culturais e sociais. É a partir destas "escutas" e das audiências públicas, com fóruns e debates abertos a todos, que poderão ser formulados projetos culturais específicos para cada região. Também é possível compatibilizar essas ações com um plano de governo local.

A ação cultural descentralizada tem sido implementada em grandes e médios municípios. Em municípios pequenos ela também pode ser aplicada, considerando-se que há distritos e vilas distantes das cidades. Muitas vezes o cidadão da roça procura no centro uma atividade que poderia encontrar numa escola de bairro.


* Publicado originalmente como DICAS nº 59 em 1996

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