” No Brasil, a independência não resultou na descolonização(…) : a escravidão não foi abolida; o regime monárquico permaneceu (…).”

V Centenário de História do Brasil

CAMPANHA: 500 ANOS DE RESISTÊNCIA INDÍGENA, NEGRA E POPULAR

DESENHO DA EQUAÇÃO POLÍTICA


Caracterização do problema I. O Brasil é um país dividido, onde a maioria da população é considerada intrusa, minorizada, descartável. O sistema de exclusão toma a forma de apartheid sócio-racial, cujas raízes, seculares, estão fincadas na colonização, ou seja desde a chegada dos portugueses ao Brasil, há cerca de 500 anos. Resultado: o país não decola. As desigualdades e a violência imperam, a situação é de mal-estar material (miséria), social, psicológico (discriminação racista e baixa auto-estima). Sem genuína legitimidade o Brasil não é tratado como interlocutor válido no cenário mundial; é visto como um país-anedota; um arcaico e alegórico penduricalho colonial. O mundo inteiro percebe isto.

Isto pode ser verificado pela observação diária da vida sócio-econômica dos brasileiros e pode ser confirmado pelas estatísticas internacionais (Índice de Desenvolvimento Humano, etc.), frequentemente divulgadas pela imprensa. A situação chega a tal ponto que se ouve, com uma frequência cada vez maior, altas personalidades mundiais (inclusive do mundo das finanças, insuspeitos de simpatias esquerdizantes) dizerem que “o Brasil é provavelmente o país mais desigual do planeta”; ou seja, até a direita internacional está incomodada com nossa situação. Os movimentos indígenas, negros e populares vêm denunciando o sistema de exclusão, o apartheid e o racismo há muitos anos, mas os detentores do poder se fazem de surdos. Não há um real engajamento para mudar essa situação. E o mais grave: nem a oposição parece ter um real interesse em sair desse impasse; por mais estarrecedor que possa parecer (e que talvez demonstre como as pessoas estão impregnadas pelo racismo), a esquerda não consegue enxergar o essencial – ela continua a falar na economia e na luta de classes, quando, de toda evidência, o problema brasileiro é de ordem étnica (e racial).

. País dividido – sistema de exclusão – apartheid sócio-racial – colonização

. Inexistência de engajamento capaz de produzir a mudança

2. Caracterização do problema II. O problema tem raízes fincadas na colonização européia, como foi dito. A expansão européia não se explica apenas pelo mercantilismo, e pelo avanço tecnológico. Ela está associada à conquista e à colonização de povos e territórios. Guerra e comércio andam juntos, como muitos estudiosos já constataram (Clausewitz, Lévi-Strauss, etc). Mas a conquista e a colonização pressupõem a existência de disposições mentais, por parte dos conquistadores, que as justifiquem; sem isso não haveria luta. Essas disposições se baseiam no etnocentrismo. O etnocentrismo é comum a todos os povos, mas nem sempre ele é utilizado como fundamento para conquistas.

O etnocentrismo está, portanto, na base da ideologia do colonialismo europeu e da constelação causal que a ele está relacionada, ou seja, o escravismo, o genocídio, o etnocídio (destribalização forçada, destruição metódica das culturas), o ecocídio. Na cauda dessa constelação se encontram o racismo, o apartheid, a exclusão social, como produtos mais novos do colonialismo europeu. Eles são o braço ativista do etnocentrismo.

Os processos revolucionários que culminam nas independências nacionais corrigem essa situação anômala: recuperam a auto-estima nacional, centram o país sobre si mesmo, promovem o bem-estar social. O país “se resolve” (se legitima, se transforma numa verdadeira nação).

Contudo, no caso do Brasil, e creio que da maioria dos países sul-americanos, isto não aconteceu. No Brasil, a independência não resultou na descolonização. Apesar de ter havido guerras regionais pela independência (sobretudo na Bahia e no nordeste), isto não resultou em verdadeira libertação: a escravidão não foi abolida; o regime monárquico permaneceu (o príncipe português não só continuou o seu reinado, como foi protagonista do ato emblemático da independência). Parecia uma independência para inglês ver (quase que literalmente), uma independência de pacotilha. Ela poderia ser caracterizada como puramente administrativa se não se percebesse o “ruído de fundo” produzido pelos anseios do povo. Esse “ruído”, porém, morreu na praia.

A proclamação da República não resultou, também, em descolonização. A abolição da escravidão ocorreu um ano antes, não sendo atrelada à proclamação propriamente dita; o Brasil consumou sua independência administrativa, mas a mentalidade das classes dominantes seguiu sendo eurocentrista. A divisão do Brasil continuava: agora, de um lado nós tínhamos os herdeiros dos colonizadores (a minoria), do outro, os descendentes dos “vencidos”(a maioria). Os “vencidos” de ontem passaram a ser os excluídos de hoje; os herdeiros dos colonizadores são os beneficiários da exclusão. A exclusão tem, portanto, base étnica, já que “vencidos” foram os povos conquistados e escravizados para a implantação da empresa colonizadora. Destes sobressaem os afrodescendentes, pelo seu número: os negros são fortemente discriminados e mesmo segregados; a grande maioria dos mestiços é também considerada negra e discriminada como tal. Consideram índios apenas aqueles que não tem contato (ou tem pouco) com a “civilização”.

De lá para cá a situação pouco mudou. O projeto de branqueamento foi aprofundado com a política de imigração européia. Esses “novos” brasileiros, implantados sobretudo no sul do país, receberam incentivos e regalias – muito diferente do tratamento dado aos afrodescendentes imediatamente após a abolição da escravatura. Beneficiando do eurocentrismo ambiente e da sua experiência industrial, os imigrantes europeus ocupam espaços econômicos, políticos e administrativos maiores que sua proporção na população; negros e mestiços são marginalizados, apesar de serem brasileiros de velha extração.

Aqui, nós voltamos à Caracterização do Problema I, ou seja, à situação presente.

* Etnocentrismo na base do colonialismo europeu – Constelação causal: escravismo/ genocídio/ etnocídio/ ecocídio/– Braços ativistas do etnocentrismo/ colonialismo: os contemporâneos racismo/ apartheid/ exclusão

* Problemas desaparecem com a independência/ descolonização

* No Brasil isto não aconteceu – “Vencidos”de ontem são os excluídos de hoje, sobretudo os negros – A exclusão tem, portanto, base étnica.

O que mudar. Tendo em vista a Caracterização do Problema I, fica claro que é preciso haver uma mudança de mentalidade. Um projeto vasto nos aguarda. As mentalidades colonialista e colonizada devem desaparecer, cedendo o lugar para a mentalidade independente, autocentrada. O sentimento de inferioridade deve ceder lugar a auto-estima, ao sentimento de igualdade. Deve-se proceder à tão aguardada descolonização do país, que será assim legitimado, tornando-se uma verdadeira nação. Uma nação que finalmente completará sua independência.

A mudança deve incidir, portanto, sobre a questão da identidade. Mais do que a economia e a luta de classes é a visão de si mesmo que tem que mudar. Isto significa ter que agir sobre os operadores lógico-simbólicos do sistema de exclusão, ou seja, sobre as formas concretas (porém simbólicas) em que o etnocentrismo se manifesta. Retiradas essas peças o resto se desagregará. Melhor ainda se as peças puderem ser emblematicamente aglutinadas numa peça única, e especialíssima, como o evento fundador da história escrita do Brasil. O caráter de refundação do país será dado.

* Mudar a mentalidade – Descolonização/ Legitimação/ Nação independente
* Incidir sobre a identidade
* Agir sobre os operadores lógico-simbólicos (emblem. aglutinados em peça única)

Como mudar.

Para agir é preciso uma oportunidade, um gancho. Uma oportunidade que seja de molde a dar o máximo de visibilidade à questão. Ela nos é oferecida sob a forma de “comemorações para o V Centenário do Descobrimento do Brasil”. Trata-se da História e da identidade, não poderia haver oportunidade mais adequada.

O que fazer? Duas coisas. Ou melhor, uma: atacar o (necessariamente) colonialista projeto oficial para essas comemorações e, ao mesmo tempo, o operador por excelência do sistema de exclusão – ou seja, o conceito do descobrimento, marco de referência dessas comemorações e definidor do evento fundador da história escrita do Brasil.

As duas coisas estão sendo feitas. O faraônico projeto oficial, o chamado Museu Aberto do Descobrimento (MADE), foi ferido de morte. Há quase três anos o governo está reduzido a administrar sua derrota mantendo, a todo custo, a encenação sobre o MADE. Cabe-nos manter a pressão e dar mais VISIBILIDADE a essa derrota do governo. Há aí uma “pérola” capaz de provocar uma feérica desmoralização deste: trata-se da definição (técnica) do que seria um “museu aberto”; tudo leva a crer que o governo criou uma espécie de (não riam) “museu de loteamentos” no sul da Bahia. Os sistemas coloniais têm dessa coisas: pela força do hábito – do hábito do menosprezo, entenda-se – um dia eles cometem um erro fatal; e caem como castelos de cartas. Para coroar o caráter tragicômico do projeto, seu subtexto é de fatura sebastianista, dando o tom surrealista ao fim de um reino.

O ataque à definição do evento fundador do Brasil-colônia também está sendo realizado. Desde o dia 07/02/1997, com a publicação do artigo “Descobrimento?”, por Celene Fonseca, no Jornal do Commércio, em Pernambuco. O título original do artigo foi mudado (com o consentimento da autora) e o artigo foi publicado numa sexta-feira de carnaval, mas isto não impediu sua posterior publicação em diversos jornais do país, especialmente em A TARDE, 1º de abril de 1997 (“O descobrimento que não houve”). Cabe-nos dar VISIBILIDADE ao fato, AMPLIFICAR O DEBATE. Literalmente crier à le scandale. Ou seja, apontar para a manipulação da história e envolver os excluídos neste veemente processo. Associar o racismo ao etnocentrismo (“braço ativista”) e exigir a implantação de políticas compensatórias de ação afirmativa, tendo os negros e os índios como público alvo.

O questionamento do descobrimento se presta à merveille a isto: o tamanho da enganação é tão visível, palpável e evidente que de imediato tem-se a profundidade e as dimensões da fratura social; e esta COMPREENSÃO INSTANTÂNEA pode ser a fagulha necessária à mudança. E a argumentação não admite réplica. As tímidas tentativas que ocorreram não foram capazes de estabelecer um debate. Elas partem sobretudo dos institutos de letras e se baseiam principalmente na querela entre relativismo/racionalismo. Professando um relativismo absoluto eles propõem a visão da história como narrativas. O Brasil teria sido assim “inventado”. Ora, a expressão “Invenção da América” foi criada nos anos 50 pelo historiador mexicano Edmund O’Gorman; e não pegou – além de datada, o ponto de vista ali empregado foi o do europeu, ou seja, de como a América foi tomando forma no imaginário europeu. Pois bem, com atraso de quase meio século, alguns brasileiros também dizem que o Brasil foi “inventado”. O viés lusocêntrico continua presente, pois mesmo que considerem algumas “invenções” dos conquistados, quem direciona a narrativa são os conquistadores. Simplificando, o Brasil seria uma invenção portuguesa. É invencionice demais! Tem tudo para figurar como “a última invenção” das elites.

Voltando ao pano de fundo: a querela relativismo/racionalismo. Segundo os relativistas, não existiria uma razão autônoma; os critérios de significação e verdade resultariam da convenção cultural de cada grupamento humano (e aí aparece o gancho com a linguística e, claro, com os institutos de letras); as culturas devem ser analisadas no seu contexto, não existiria verdade universal. Os racionalistas sustentam, ao contrário, que a experiência e a razão são capazes de determinar as teorias, dependendo portanto, de fatores limitantes externos (e universais).

Um meio termo deve ser encontrado. É pueril conceber a história apenas como narrativa (ou invenção). Isto equivaleria a dizer que é impossível fugir aos preconceitos do grupo, logo, impossível a compreensão racional de outras culturas – o mundo seria um amontoado de “estórias” ininteligíveis. O relativismo absoluto torna impossível fazer o que ele prega: a contextualização das culturas. Numa atitude mais sensata, nós devemos introduzir doses de relativismo no racionalismo, ou seja, relativizar as afirmações enfáticas baseadas apenas na percepção primária (supostamente universal) da realidade. Nós devemos praticar um relativismo conseqüente.

O detalhamento das questões conceituais será feito à parte.

. É evidente que aqueles que mais se caracterizam como genuínos descendentes dos “vencidos” – índios e negros – devem ser a ponta de lança dessa luta. Pela feição urbana dos movimentos negros e por terem o contingente mais numeroso, os negros/mestiços estão mais capacitados para levá-la a seu termo. Assim, a aliança entre índios e negros será definitivamente cimentada. É preciso salientar que, como descobridores e primeiros donos da terra, os índios são incontornáveis. Mas pode-se dizer que a ruptura será negra ou não será. Os negros adquirirão assim uma GRANDE ESTATURA MORAL, imprescindível para a implantação das políticas compensatórias.

Maior detalhamento político (inclusive sobre a delimitação do campo político ou a maneira de barrar a adesão dos beneficiários da exclusão) será feito num plano à parte.

O grande desafio. Contrariar os planos dos beneficiários da exclusão. A mudança é tão irreprimível que eles não enfrentam o debate. Ao contrário, eles tentam fazer a “transição doce”; tentam fazer com que a mudança passe despercebida, o que equivale a MUDAR SEM NADA MUDAR. Ou seja, incorporam dissimuladamente a mudança nos seus discursos (ver artigos de Marco Maciel, discursos de FHC e ACM); uma poderosa rede de televisão “tomou a si” o V Centenário, na tentativa de embaralhar os dados e assim circunscrever previamente os conflitos. Nosso grande desafio é furar a todo custo este bloqueio fazendo com que o povo inteiro vibre conosco. E refunde o país.

* Aproveitando a oportunidade do V Centenário História do Brasil
* Atacando o colonialista projeto oficial e o operador, por excelência, do sistema de exclusão
* Amplificando o debate, dando visibilidade ao ataque. GRANDE DESAFIO: contrariar planos de “transição doce”, já urdido pelos setores dominantes. Mudar para valer e não sem nada mudar.
* Mantendo a pressão
* Negros adquirem grande estatura moral, o que viabiliza a exigência das políticas compensatórias

Salvador, 28 de fevereiro de 1999.
Celene Fonseca
Membro da Comissão de Texto e Comunicação
Tel: (071) 334-7961 (resid.) e 230-9835 (trab.)
E-mail: [email protected]

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