“Na opinião do professor, o Brasil não tem fôlego para acompanhar a estratégia por não ter pesquisa e desenvolvimento em ciência e tecnologia (…)”

Sociólogo desvincula tecnociência de progresso*

Por Cézar Xavier

“A esquerda precisa deixar de lado a ingenuidade quanto ao papel progressista da tecnociência no capitalismo contemporâneo.” A afirmação é do professor da Unicamp e “sociólogo da tecnologia” Laymert Garcia, em sua exposição sobre as “Perspectivas que a revolução micro-eletrônica e a Internet abrem à luta pelo socialismo”.

Este foi o tema do seminário realizado na segunda-feira no Diretório Nacional do PT, com comentários do jornalista Bernardo Kucinski, da psicanalista Maria Rita Kehl e do líder da bancada petista na Câmara, deputado Walter Pinheiro (BA).

Segundo o acadêmico, sua exposição buscou identificar o campo de conflitos gerados desde que a “virada cibernética” deu novo fôlego ao capital e fragilizou trabalhadores, pobres e excluídos do mundo. “Para além das ideologias, e até mesmo das questões de classe, agora o conflito concerne à própria vida, sua defesa ou sua apropriação”, disse Laymert, após discutir o modo como o capitalismo se organizou para o patenteamento e privatização dos seres vivos.

“Defendo que é preciso discutir politicamente a tecnologia e conhecer as opções tecnológicas possíveis, para evitar que elas nos sejam enfiadas goela abaixo.”

Na opinião do professor, o Brasil não tem fôlego para acompanhar a estratégia da aceleração tecnológica por não ter pesquisa e desenvolvimento em ciência e tecnologia e pela contribuição “ridícula” em inovações patenteáveis. Segundo ele, o Brasil é o número um em “megadiversidade” biológica e recursos genéticos, mas está sendo saqueado com o estímulo do governo federal.

“É claro que temos o Projeto Genoma que nos dá a chance de sair na capa da Nature e da Science uma vez na vida e outra morte, alimentado a ilusão de que fazemos parte do Primeiro Mundo”, ironiza Laymert. Neste momento de sua exposição, o acadêmico lembra o sociólogo Darcy Ribeiro, ao definir o “povo brasileiro” como “não existindo para si”. Na concepção do sociólogo, o brasileiro reduz-se a uma “aviltada força de trabalho” a serviço de interesses externos e de uma elite que atua apenas como representante local desses interesses.

Vende-se vida – “Os críticos do capitalismo discutem pouco o caráter predatório que justifica e legitima a redução dos seres vivos à condição de matéria prima sem valor”, alertou Laymert. Ele explicou que na economia contemporânea quem reivindica a exclusividadSociólogo Laymert Garcia desvincula tecnociência de progressoe da geração de valor sobre a natureza passa a ser o biotecnólogo.

O professor começou sua exposição explicando “epistemologicamente” como a “virada cibernética” foi capaz de transformar a natureza em informação, para então dar-lhe valor financeiro e comercializá-la livremente. “A virada cibernética transformou o mundo num inesgotável banco de dados”, define ele.

Laymert relata que o capital global, no século XX, passa a preocupar-se em encontrar uma formulação jurídica que lhe permitisse assegurar o acesso e o controle da informação não somente no “plano molecular”, mas também no mercado mundial em que ela será explorada, depois de reprogramada como inovação. Até a década de 30 as patentes abrangiam apenas a natureza inanimada. A partir de então, ocorre uma revolução jurídica com a intrusão do ser vivo no campo da patente. O modelo jurídico parte de uma concepção sagrada do ser vivo, para uma concepção instrumental, e até mesmo industrial. “Ao tentar definir o objeto de disputa entre os laboratórios de biotecnologia, o jornal Financial Times denominou-a de a derradeira privatização”, citou.

Seleção natural
– O sociólogo lamenta o fato de as forças progressistas não discutirem politicamente a tecnologia “porque o mito do progresso que só traz benefícios e bem-estar, cabendo aos democratas lutar pela sua universalização, continua intocado”.

Laymert explicou como o Brasil se exclui da pSociólogo Laymert Garcia desvincula tecnociência de progressoroposta de aceleração tecnocientífica do capitalismo. “O progresso exige uma contrapartida neodarwinista, pois para manter sua aceleração, define quem tem o direito de sobreviver, e quem está condenado a desaparecer por recusar-se ou resistir a ele, ou mostrar-se incapaz de acompanhá-lo”.

Laymert compara o “caráter genocida” implícito na estratégia global do neoliberalismo com o modelo de limpeza social de Auschwitz, campo de concentração nazista na Segunda Guerra Mundial. Segundo ele, o modelo nazista é o contrário do que o capitalismo precisa, pela ineficiência, burocracia, despesa e responsabilidade estatal.

“A seleção das vítimas não deve ser responsabilidade de ninguém, senão delas próprias. Elas se selecionarão a partir de critérios de incompetência, de inaptidão, de pobreza, de ignorância, de preguiça, de criminalidade, encontrar-se-ão no grupo dos perdedores”, revela o sociólogo, citando o Relatório Lugano de Susan George que desvenda as estratégias excludentes do sistema.

Para o professor, é a partir desta compreensão que conflitos regionais, crises, epidemias, desmanches econômicos do Terceiro Mundo, esterilizações em massa, entre outros colapsos, adquirem “inteligibilidade espantosa”. “Não deixa de ser irônico e paradoxal pensar que quando o capitalismo parece triunfar no mundo inteiro ele precisa entrar em guerra com todas as sociedades e culturas”.

Futuro virtual – Se antes o capitalismo se orientava em torno da comercialização de uma produção industrial e do lucro gerado pela acumulação de capital, segundo Laymert, o capitalismo “de ponta” passa a interessar-se mais pelo controle dos processos que dos produtos. O capital, e antes de tudo o capital financeiro, começa a deslocar-se para o campo do virtual. O comportamento da economia é analisado por simulações cada vez mais complexas baseadas não mais na circulação de “dinheiro vivo”, mas num fluxo financeiro que é considerado enquanto potencial, ou na linguagem cibernética, enquanto “virtualidade”.

Laymert cita a privatização das telecomunicações, a colonização das redes e o loteamento do campo eletromagnético, que deve seguir-se como a busca do capital global pelo controle sobre o acesso e a exploração do ciberespaço.

Numa avaliação “catastrofista”, a ambição maior da nova economia seria “assenhorear-se da dimensão virtual da realidade e não apenas da dimensão da realidade virtual”. “Aliado à tecnociência, o capitalismo tem a ambição de apropriar-se do futuro”, denuncia o professor da Unicamp.


* Extraído do site da Agência Informes de 07/06/2001