Davos é branca. Porto Alegre, um caleidoscópio multitudinário… Davos é branca, sem nuances. Porto Alegre, um arco-íris. Davos é única. Porto Alegre é vária. Davos é a ordem. Porto Alegre, a liberdade… Davos foi o norte… Porto Alegre é o sul do século. O século XXI será o século do Sul?

Não deixam de ser reveladoras as imagens de arame farpado, pouco familiares na Suíça, cercando Davos. O que teme Davos? Aquele militante solitário agitando sua bandeira contra o silêncio branco? Não. Davos teme os símbolos. A desencontrada polifonia das vozes do Sul. A multiplicação das cores, das nuances. Davos teme a diferença. No pensamento e na ação.

Porto Alegre, 25 de janeiro. Luis Fernando Veríssimo, no seu comentário diário reflete: não se pode dizer que o século XXI começou em Porto Alegre. Mas alguma coisa importante começou em Porto Alegre… Representantes de 122 países desembarcaram nesta cidade do Sul do mundo trazendo na bagagem um sem número de experiências locais, comunitárias, sindicais, experiências de movimentos sociais das mais diferentes origens, assentadas sobre um princípio básico, embora não único: a solidariedade.

O Fórum Social Mundial realizado de 25 a 30 de janeiro foi antes de tudo uma grande feira do espírito. Uma feira que ofereceu espaço para a troca de alternativas e de soluções para os grandes problemas da humanidade neste século que se abre. Trabalhou a partir de uma agenda que se diferencia radicalmente da agenda branca de Davos. Enquanto nos Alpes, o Fórum Econômico Mundial se debruçava sobre estatísticas e orientava seu interesse pela análise da taxas de juros, pelo comportamento das Bolsas de Valores, das tarifas alfandegárias e a desregulamentação dos mercados, em Porto Alegre o Fórum Social Mundial fixou sua atenção nos dramas que afligem mais de dois terços da humanidade: a fome, as guerras, a espantosa morte de um continente: a África, a exclusão social, o desemprego, as doenças endêmicas, a concentração galopante da riqueza e o aprofundamento das desigualdades sociais, a destruição das conquistas trabalhistas, o controle monopolista da informação.

Depois de experimentar um tratamento inexplicavelmente leviano ao Fórum Social Mundial, alguns jornais estiveram mesmo próximos da caricatura, a imprensa brasileira mudou de tom, para fugir ao provincianismo e aos clichês ideológicos neoliberais que vinha repetindo. Diante da extensa cobertura que Porto Alegre recebeu dos órgãos de imprensa de várias partes do mundo, particularmente depois da tele-conferência Porto Alegre-Davos, a imprensa brasileira, habituada a vender opinião como se fosse notícia, corria o risco de ficar reduzida ao ridículo. Alguns veículos, mais atentos, buscaram então a fórmula mais sutil de abordar Davos e Porto Alegre como pólos opostos, mas não excludentes, de uma mesma perspectiva de desenvolvimento humano. Por essa lógica conclui-se que a humanidade precisa apenas de algum tempo e paciência de trabalhar a síntese necessária…

Pela agenda, pelo método e pela abordagem dos conteúdos tratados, Porto Alegre e Davos são irreconciliáveis. Não se trata de atribuir ao Fórum Social Mundial méritos que ele não tem. Não foi um Congresso de Partidos ou um Congresso Sindical nos moldes da esquerda tradicional. Não tirou mais que um breve manifesto, em termos modestos e a perspectiva de voltar a se reunir em Porto Alegre em 2002. Não resulta dele nenhum aparelho partidário, uma internacional dos excluídos de Davos, um pacto de qualquer natureza. Não creio que isso diminua sua importância, neste momento de declínio da hegemonia neoliberal.

O Fórum Social Mundial sinalizou, na disputa simbólica, que a esquerda vai construindo, ainda que de forma pulverizada, alternativas contra a barbárie capitalista estabelecida. E isso não é pouco, depois de tantos anos ouvindo a mesma ladainha sobre a excelência das privatizações, sobre o advento definitivo e unificador da modernidade, sobre o fim da história. Em 1984 depois de um esforço gigantesco, os cubanos mobilizaram o continente para recusar o pagamento a Dívida Externa impagável. Falando para os movimentos sociais, para os sindicatos, para os partidos de esquerda e para personalidades; falando para um universo ideologicamente muito mais homogêneo do este de Porto Alegre, Fidel, a rigor, se dirigia aos governos dos países latino-americanos, porque sabia então, como devemos intuir agora, que uma ação política dessa magnitude só ocorre com a participação dos governos ou pela insurreição popular. Pois bem, os países latino-americanos continuaram a pagar a extorsão da Dívida Externa, com alguma moratória aqui ou ali, imposta mais pelas circunstâncias do que por um assomo de altivez e soberania. Essa realidade, contudo não retira a importância da Conferência da Dívida Externa de 1984, em Havana, como o marco da denúncia mais cabal do processo de endividamento dos países do terceiro mundo e do seu caráter ilegítimo e imoral.

Não me parece que o Fórum Social Mundial tenha capacidade ou o desejo de convocar a insurreição popular em escala planetária dos povos do sul contra o G7. Mas o que se viu em Porto Alegre naqueles cinco dias de debates, conferências, oficinas, testemunhos e o que se passou nos corredores dessa grande feira será de valor inestimável para a construção das alternativas contra a barbárie que entrou por nossa porta e vai convivendo conosco como se fosse inevitável.

Retiro, para finalizar essas reflexões, um cristal que talvez nos ajude a compreender o significado desse momento, que de algum modo abre o século XXI: a impossibilidade de conciliar a ira de Hebe Bonafini, representando as Madres de Mayo, com a lógica do especulador George Soros. As Madres de Mayo são a encarnação da dor para a qual ainda não há tradução política possível. Soros é a encarnação do lucro especulativo para o qual, definitivamente, não há tradução ética possível. Porto Alegre nos espera em janeiro próximo com nossa bagagem de esperanças nutridas por aquele critério básico embora não único: a solidariedade. Ela é o alicerce que sustentará um outro mundo possível.

*Pedro Tierra é diretor da Fundação Perseu Abramo.

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