“Para os índios, em contrapartida, houve verdadeira surpresa: depois do “canoa grande à vista” aquela costa foi tomada pela perplexidade…”

Por Celene Fonseca*

Por Celene Fonseca*

A proximidade do V Centenário de História do Brasil nos incita à reflexão. Sem falar da natureza – num país mestiço – dessa co-memoração, a primeira delas diz respeito à própria redefinição do seu marco de referência, o chamado “Descobrimento do Brasil”.

Pode parecer audacioso, e pretensioso, querer contestar, num pequeno artigo, uma tese tão arraigada nos espíritos. Mas a própria enormidade do “equívoco” nos indica que sua correção deve ser tentada no terreno político e informacional.

Mas vamos aos fatos. O evento fundador da história (escrita) do Brasil está mal definido. Considerando-o sob diversos ângulos nós veremos que mesmo do ponto de vista europeu não houve descoberta, ou melhor, o descobrimento não pode ter sido português. Isto porque Colombo precedeu os portugueses não somente ao “descobrir” as Antilhas, em 1492, como também quando localizou a terra firme (o continente), em sua terceira viagem, em 1498. Ora, nós temos aí um fato irrefutável: como se trata de territórios contíguos, qualquer outra “descoberta” ao longo da costa desse continente está, evidentemente, subordinada à descoberta espanhola. Se assim não fosse, nós teríamos uma infinidade de descobertas!

Portanto, o “Descobrimento do Brasil” não pode estar desvinculado do “Descobrimento da América”. Não pode haver descobrimento em separado. A chegada de Cabral ao Brasil está associada à chegada de Colombo à América e é secundária em relação a esta. (Isto é tão patente que, na Europa, afora Portugal, Cabral é praticamente desconhecido).

Também, de acordo com o contexto da época não se poderia dizer que houve descobrimento especificamente português. Pois é quase impossível – visto a espionagem (e a política de sigilo) – que D. Manuel não tivesse sido informado, ainda em 1498 ou 1499, da localização do continente. E mesmo que ele não soubesse! A vigência, desde 1494, do Tratado de Tordesilhas, indica que essas terras eram virtuais possessões portuguesas e espanholas. Eles já as vislumbravam: afinal de contas, não é comum legislar sobre quimeras!

A coisa estava tão bem entendida que os espanhóis nem reivindicaram para si essas terras. Apesar de já haverem, inclusive, estado no Brasil pouco antes de Cabral (Vicente Yañez Pinzón e Diego de Lepe, em Pernambuco). O mais plausível, portanto, é que Cabral tenha vindo com a missão de tomar posse da terra, antes que os perseverantes espanhóis (apesar do Tratado) o fizessem.

Para os índios, em contrapartida, houve verdadeira surpresa: depois do “canoa grande à vista” aquela costa foi tomada pela perplexidade…

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A “Descoberta da América” também está mal explicada. Já se sabe que os vikings precederam os espanhóis (na América do Norte) por volta do ano 1000. Logo, pode-se afirmar, mutatis mutandis, que a América foi redescoberta pelos europeus em 1492.

Contudo, na era da globalização exige-se uma visão mais abrangente e racional. Pois bem, do ponto de vista da história humana, a descoberta foi asiática. Os modernos conhecimentos científicos apontam não só para a unidade global da humanidade, mas também para o fato de que os antepassados dos índios vieram da Ásia e, segundo as teorias mais aceitas, passaram à América há 30 ou 40 mil anos, pelo estreito de Bering. São os índios os verdadeiros descobridores do continente. Cedo os europeus se deram conta disso, quando ao tentar colonizá-lo (e inclusive delimitar fronteiras) tiveram que contar com os indígenas e sua “ciência”.

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A atual definição do acontecimento de 1500 carece de sustentação empírica. Como o Brasil não tem apenas 500 anos, é preferível falar em Chegada dos Portugueses, que foi seguida da Conquista.

Mas por que persistir no deliberado engano? A perpetuação do equívoco atesta a existência de beneficiários deste sistema de exclusão. Sim, porque a formulação simbólica do evento basilar de nossa história escrita não é inocente. Nem é um detalhe! Ela está diretamente relacionada à constelação causal etnocentrismo/ colonialismo/ escravismo/ genocídio/ etnocídio/ racismo. Donde a insidiosa desumanização e desqualificação do Outro. Este “outro” que é parte (da maioria) de nós, pois também nossos ancestrais.
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Os caipiras não podem mais se deixar enganar. Momento de reflexão e revivescência de um passado comum o V Centenário de História do Brasil deve ser co-memorado por todos os partícipes da construção do país. É a oportunidade ideal para desencobrir os fatos e simultaneamente renovar a luta contra o (doloroso) racismo, aumentando assim nossa auto-estima. Porém, a contracorrente dos outros países americanos, que não permitiram que se festejasse Colombo sobre seu território – a grande festa aconteceu em Sevilha -, o governo brasileiro pretende implantar um projeto arcaico, de fatura colonial, que homenageia os Conquistadores, como se o Brasil fosse monoliticamente português e não pluriétnico e mestiço. No projeto, o Brasil se inscreve como mero coadjuvante de uma vitoriosa campanha diplomática portuguesa, com raízes em Tordesilhas.

A real dimensão do Brasil só virá pela sua inserção no contexto global da história humana. Disso depende a legitimação do continente mestiço. Dessa vez , nós não podemos deixar passar o moderno bonde da história.


*Aldeneiva Celene de Almeida Fonseca é antropóloga.

Obs.: este artigo foi publicado em vários jornais do país, especialmente em A TARDE em 1º de abril de 1997, pág. 06. Foi também publicado num pequeno jornal da comunidade brasileira de N. York.

Obs.: a palavra co-memoração deve ser grafada assim mesmo.

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