"Porque nenhuma cultura fica parada no tempo. As línguas e as culturas mudam, mas os povos em geral continuam a apropriar-se de suas "origens"(…)".

Os portugueses tampouco. Os lusitanos, como os Tupi (da costa), perderam sua língua. O português é uma língua derivada do latim. (Os romanos prefeririam certamente falar em deturpação do latim, "algaravia de brutos"). De forma que, mutatis mutandis, nós poderíamos dizer que nós falamos a língua do conquistador dos nossos conquistadores.

A frase, surpreendente para a grande maioria, pode parecer despropositada para alguns. Entretanto, ela é prenhe de reflexões. Devido ao seu grande poder relativizador. Ainda mais quando, no âmbito das discussões sobre o V Centenário de História do Brasil, começa-se a verdadeiramente interrogar as fontes antigas de nossa história. Foi o que aconteceu com o marco de referência dessas co-memorações. "O descobrimento que não houve", artigo publicado em A TARDE, em 1º/4/97, e em muitos outros jornais do país, é o paradigma dessa mudança, ao tempo em que espelha a escandalosa fratura social desse país. E isto quase 200 anos após a Independência, duramente conquistada – é preciso lembrar – nas batalhas travadas na Bahia.

Mas, voltemos aos lusitanos. Eles resistiram, mas não foram suficientemente fortes para rechaçar o invasor romano. Como outros povos europeus, foram escravizados, colonizados, utilizados como soldados contra sua pópria gente. Como para comprovar que a colaboração em situação colonial não é monopólio dos africanos, ou dos índios, os "bárbaros" também vendiam-se uns aos outros após suas guerras fratricidas. Enfim, os europeus foram os "índios" dos romanos.

Até hoje não se sabe ao certo qual era a língua dos lusitanos: de origem céltica? ou ibérica? (tartessiana ou pirineo-cantábrica?) Sua cultura é também pouco conhecida: podemos dizer que nós conhecemos mais sobre os Tupinambá, por exemplo, que os portugueses sobre os lusitanos. No entanto, Viriato, o nome do grande resistente, figura hoje no pórtico da Praça do Comércio, em Lisboa. E, apesar da derrota, das outras invasões e miscigenações, da perda da língua e da cultura original, os portugueses se dizem lusitanos.

E são. Porque nenhuma cultura fica parada no tempo. As línguas e as culturas mudam, mas os povos em geral continuam a apropriar-se de suas "origens", mesmo que, de tão longínguas e intangíveis, elas passem a se confundir com o mito. Este digno respeito pelos antepassados parece corresponder a uma necessidade de explicar-se em vista do continuum temporal, um dado fundado na experiência – à qual vem se juntar noções abstratas do tempo. Trata-se da explicação em termos de antecedentes e consequentes que, juntamente com a variável espacial, têm servido de terreno intersubjetivo, único que possibilita a convivência.

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Saber que os nossos conquistadores também foram conquistados um dia, nos alivia do peso de portar sozinhos o estigma de "submetidos". E nos permite enxergar que portugueses e europeus beberam tanto quanto ou mais na fonte greco-romana que os brasileiros na fonte lusa. E nem por isso se consideram inferiores! Como podemos ver, num Brasil inserido no contexto global da história humana não há lugar para sentimentos de inferioridade. Ao contrário, "nós devemos estar à vontade", como diz o poeta-cantor. À vontade para combater o etnocentrismo europeu e seu braço ativista, o racismo (de resto sui generis, no Brasil).

Todavia, setores dominantes da sociedade continuam a querer fazer colar à nossa pele a idéia de uma cultura monoliticamente portuguesa, que não encontra amparo na realidade. O exemplo mais cabal (e prosaico) desse lusocentrismo militante talvez resida na gratidão miévre, beata, caduca e tola, que diz: "Até para falar o que você acabou de falar, você precisou do português". Como se o português fosse a única língua do mundo! Como se pudesse existir povo sem língua! Como se tivéssemos escolhido o português! Como se tivéssemos uma eterna e irresgatável dívida para com Portugal! Como se a cultura se reduzisse à língua!

Ora, nenhuma dívida foi contraída. Se não fosse a língua portuguesa seria outra, inclusive as africanas ou as nativas. Não nos esqueçamos que há apenas pouco mais de dois séculos o tupi deixou de ser a língua franca do Brasil. Além disso, a língua portuguesa – tão melodiosa, tão "nossa" – foi imposta pelo colonizador, que ao esmagar as outras línguas patrocinou o magistral silêncio dos "vencidos".

Relativizar é preciso. Navegar, não mais. Ou, melhor, a globalização das informações nos permite navegações relativizadoras, que, indo às fontes pré-históricas, antigas e contemporâneas, "transformam o familiar em exótico e o exótico em familiar", como diz um dos nossos antropólogos. Religando oceanos de incompreensão, costurando fraturas sociais, ao continente mestiço talvez caiba a ingente tarefa de sintetizar o humano. Sem perder de vista a luta dos Viriatos, Espártacos, Vercingetorixes, Cunhambebes e outros resistentes indígenas, que tanto fizeram para manter acesas as diferenças culturais, mantendo vivo o nosso interesse pela vida. Zumbi vive.

*Aldeneiva Celene de Almeida Fonseca é antropóloga, doutoranda da École des Hautes Études en Sciences Sociales (França) e autora da Proposta Inicial "Memorial Tupinambá: co-memorações de quinhentos anos de História do Brasil". A TARDE, 20 de novembro de 1997.

 

Artigo publicado em vários jornais do país

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