“A divisão diante das comemorações não é artificial. Um povo que não conhece a sua história está predestinado a não mudá-la.”

Os outros 500

Por Luiz Inácio Lula da Silva*

A sociedade brasileira está diante de duas visões sobre os 500 anos do nosso país. Uma, oficial, absolutamente comemorativa, apoiada e promovida por quase todos os meios de comunicação. A outra, alternativa, questionadora, tendo à frente organizações representativas de índios, negros, sem-terra, mulheres, sindicalistas, variadas ONGs e partidos políticos do campo democrático popular.

O que as nossas crianças aprendem na escola sobre a história do Brasil?

Aprendem, por exemplo, que os índios eram preguiçosos e que os portugueses importavam escravos da África para trabalhar no Brasil. Duas grandes mentiras, criadas pelos colonizadores e divulgadas até hoje.

Os índios, em sua grande maioria, reagiram à dominação portuguesa, não se submeteram à escravidão e foram dizimados. Os negros eram homens livres na África. Vencidos militarmente, foram presos, seqüestrados de sua terra natal e trazidos acorrentados para trabalhar e morrer no Brasil.

Costumo dizer, citando alguns historiadores, que os portugueses foram competentes durante a nossa colonização: conseguiram manter o país unificado com uma só língua; construíram fortificações militares em toda boca de rio importante neste vasto litoral; e impediram que se formassem universidades em nosso país, mantendo o povo na ignorância e a nossa cultura dependente da européia. Tudo isso foi muito bom para a dominação portuguesa, é claro.

O governo quer marcar o evento dos 500 anos com um clima de seleção brasileira, de “pátria de chuteiras”, de “Brasil, ame-o ou deixe-o”. O máximo de festa e o mínimo de reflexão.

A divisão diante das comemorações não é artificial. Um povo que não conhece a sua história está predestinado a não mudá-la.

A exclusão social é uma marca destes 500 anos. O escravo era tratado como um simples instrumento de trabalho. Hoje, cerca de 40% da população mais pobre detém somente 7% da renda nacional, enquanto os 10% mais ricos ficam com cerca de 51%. A maior taxa de concentração de renda do mundo. É por isso que não há, por exemplo, nenhuma preocupação dos governantes com o aumento do salário mínimo de milhões de brasileiros e aposentados. É como se prevalecesse ainda a mentalidade escravagista. Afinal de contas, uma pessoa que ganha R$ 151 não pode dizer que é exatamente livre.

Outra questão que divide a história do nosso povo é a da violência.

Alguém pode imaginar que seria possível manter uma sociedade escravagista sem o uso regular e sistemático da violência contra os escravos? Essa violência tem sido legitimada ao longo do tempo pelo Estado: os “coronéis”, todo mundo sabe, sempre tiveram o poder da vida e de morte em relação aos seus empregados e servidores por esse interior afora. A grande maioria da população humilde, que vive nos campos, nas favelas, nas periferias das cidades, é tratada a ferro e fogo pelas polícias ou por milícias particulares, sempre que manifesta descontentamento ou contraria os interesses dos poderosos. Muita gente que tem poder e dinheiro neste país continua agindo como se estivesse acima das leis e da justiça.

Na nossa história, os líderes populares pouco aparecem e não têm destaque. Muitas vezes são tratados como bandidos. Zumbi, líder dos quilombos; Sepé Tiaraju, grande chefe guarani; Antonio Conselheiro, herói de Canudos; e tantos outros de revoltas como as Cabanadas, Balaiadas e Farroupilhas.

O grande desafio destes 500 anos é a desigualdade social. O país tem unidade territorial, mas não tem igualdade de condições sociais.

Esconder e negar os conflitos interessa sempre aos dominadores, mas não aos dominados. Os conflitos revelam que há insatisfação social, luta real ou potencial, e possibilidade de mudança. A quem domina e se beneficia da dominação não interessa a mudança. O critério justo para avaliar os governos e períodos da nossa história deveria ser: contribuíram ou não para acabar com as desigualdades sociais no país?

Nestes 500 anos, o nosso povo pobre – a grande maioria dos negros, índios e tantos excluídos socialmente – conquistou o direito de gritar que está com fome. Mas não conquistou ainda o direito de comer.


* LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA é presidente de honra do Partido dos Trabalhadores
Artigo publicado no Jornal Zero Hora, 16/04/00 – Seção OPINIÃO

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