” O governo neoliberal criou no país um clima moral ruim.”

CUI PRODEST SCELUS, IS FECIT*

Por quase um ano – segundo eles próprios confessaram – pelo menos dois dos mais importantes senadores da República sabiam de um crime previsto em lei: a violação do sigilo do painel de votações do Senado Federal, durante a sessão de 28 de junho de 2000, em que Luiz Estevão, do PMDB do Distrito Federal, foi cassado: o senador Antônio Carlos Magalhães, até há pouco presidente do Senado e uma espécie de co-presidente da República, e o senador José Roberto Arruda, líder do governo na Câmara Alta. E como indicam todas as evidências até agora recolhidas pela comissão de inquérito e pela Comissão de Ética e Decoro Parlamentar do Senado, ambos foram mandantes, diretos ou indiretos, do crime; participaram da e acobertaram a operação montada pela ex-diretora do Prodasen, Regina Célia Peres Borges, para arrombar o painel do Senado.

Nessa altura do campeonato, para se condenar os dois, no caso específico do crime cometido, todo o resto são detalhes sem maior importância. O senador Arruda teria apenas consultado a ex-diretora do Prodasen para saber se era possível violar o sistema de votações e ela interpretou a consulta como uma ordem, adiantou-se e providenciou por conta própria a violação? ACM ficou sabendo do arrombamento apenas depois do fato consumado, recebeu a lista das mãos de Arruda, leu-a e a rasgou? O fato é que ambos, Arruda e ACM, obtiveram a lista por meio ilícito, não tomaram quaisquer providências para punir os responsáveis; tinham os cargos e a responsabilidade política para tomar essas providências; e durante quase um ano usaram essa lista sabe-se lá como. (No caso de ACM, sabe-se, com testemunhas, que ele usou a história da existência da lista para fazer chantagem política usando o nome de alguns parlamentares, mais destacadamente o da senadora do PT por Alagoas, Heloísa Helena).

ACM e Arruda mentiram várias vezes – para os eleitores e para seus pares no Senado — sobre o episódio. E só resolveram confessar parcialmente a culpa depois que os técnicos da Unicamp descobriram a invasão do sistema e depois que os técnicos do Prodasen confessaram a fraude. ACM ainda aguardou que Arruda se desmanchasse em choro, no seu segundo discurso em plenário, para construir a sua versão.

Ontem, ACM compareceu à Comissão de Ética para narrar essa versão. Assessorado por advogados e pelo dono da Propeg, uma agência de publicidade, confirmou que recebeu a lista das mãos do senador José Roberto Arruda; disse que não deu qualquer ordem para a obtenção da lista; e que não havia revelado o episódio antes por “razões de Estado”.

Foi um depoimento de quase seis horas – ao que tudo indica, pouco convincente para muitos, a não ser para os senadores do PFL que integram a Comissão de Ética e para os fãs incondicionais de ACM. Durante o seu depoimento, o senador baiano deu a impressão de fazer um recuo tático, ao deixar de atacar o presidente Fernando Henrique Cardoso.

E houve um momento aparentemente propício para esse ataque. Foi quando ACM contou como lhe foi entregue a lista da cassação de Luiz Estevão. A versão oficial é que o senador Arruda foi até o seu gabinete e lhe perguntou: “O Sr. está sentado?”. ACM respondeu que, como se podia ver, estava sentado. Arruda, então, lhe teria dito que estava de posse da lista. ACM a leu, fez alguns comentários e, depois de algum tempo, quando Arruda já havia saído, a teria rasgado.

A questão é que essa história já havia sido contada pela colunista do Correio Braziliense, Valéria Blanc. Só que a jornalista tinha uma versão do fato diferente, num ponto essencial. ACM teria perguntado a Arruda se a lista já havia sido mostrada ao presidente Fernando Henrique Cardoso, ao que Arruda teria respondido que sim. Questionado pelo senador Eduardo Suplicy sobre a omissão, ACM negou com veemência que essa parte do diálogo tivesse ocorrido. Se quisesse atacar o presidente Fernando Henrique, esse teria sido o momento adequado.

Sabe-se que Antônio Carlos Magalhães é inimigo de Eduardo Jorge, o protetor e amigo de Luiz Estevão no Palácio do Planalto. Sabe-se também que, na conversa com os procuradores da República em que revelou a existência da lista, ACM sugeriu a eles que buscassem pegar o presidente a partir da quebra dos sigilos de EJ. Por que a cassação de Luiz Estevão era uma questão de Estado, como insinuou ACM?

Aparentemente, através de delicadas articulações –possivelmente através de Jorge Bornhausen, presidente do PFL — ACM usou o fato de ainda pertencer ao bloco oficialista e de ter ainda muitos segredos a revelar sobre os bastidores do poder, para negociar um depoimento contido, defensivo, que evite a sua cassação. Se isso vai ser possível ou não, é outra história.

O crime foi cometido por quem dele tirou proveito, diz a Medéia de Sêneca: Cui prodest scelus, is fecit. Parece claro que ACM e Arruda — adversário de Estevão na disputa pelo governo de Brasília — tiraram proveito do crime da violação do painel eletrônico do Senado e merecem ser punidos. A dificuldade para a oposição, no entanto é que, a menos de considerar a questão apenas moral e não política, o que está em jogo em Brasília é mais do que a cassação ou não de dois senadores.

O governo neoliberal criou no país um clima moral ruim. O Presidente da República considera normal que tenham usado seu nome para pressionar consórcios de empresários na venda da Telebrás. Uma das gravações do chamado grampo do BNDES mostra que o discurso de 23 de setembro de 1998 no qual ele praticamente anunciou para os credores externos a Lei de Responsabilidade Fiscal era discutido nos bastidores com esses credores, antes de ser do conhecimento do Congresso Nacional.

Num governo com esse comando, achar que cassar dois líderes do bloco governista é muito, é ingenuidade. Nunca se pode esquecer que, pelas estranhas artes da política, foi o impeachment de Collor que abriu caminho para o governo de Fernando Henrique.


* Texto extraído do site da Oficina de Informações de 27/04/01

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