Apartheid à brasileira não é apenas social. Ele é também étnico/racial.

Este é o nome da campanha que os índios, os afrodescendentes e os setores populares estão preparando, com vistas às comemorações do V Centenário de História (escrita) do Brasil. O mote da campanha – Brasil: outros 500 – lembra os quinhentos anos de massacre, genocídio, etnocídio, escravidão, sofrimento e humilhações – e também de alguns momentos de efêmeras vitórias. Como o título indica, os efeitos nefastos da conquista e colonização, e a correlata resistência oferecida pelos grupos que hoje promovem a campanha, estão no âmago desse movimento. A resistência não é uma palavra vã. Ela figura no título dessa campanha para mostrar que apesar de tudo estamos vivos e sempre resistindo. E foi porque lutamos que pudemos sobreviver.

Desde o início fica claro, portanto, que o Brasil é um país dividido. O fato de haver uma campanha que se contrapõe aos festejos oficiais indica que parte substancial dos brasileiros – a maioria – não se reconhece no ideário de nação dos setores dominantes da sociedade. E este não reconhecimento se apoia na realidade: a maioria da população é considerada intrusa, descartável, é minorizada. As estatísticas evidenciam isto: o Brasil é provavelmente o país mais desigual do planeta! E este perverso sistema de exclusão tem sua raízes fincadas na colonização, ou seja, desde a chegada dos portugueses ao Brasil, há cerca de 500 anos.

De fato, verifica-se que os “vencidos” de ontem são os excluídos de hoje. Os herdeiros dos colonizadores continuam a explorar – e de certa forma a massacrar – os descendentes dos “vencidos”. Como a conquista se deu no âmbito de etnias, que se distinguiam inclusive por marcadores corporais, é evidente que a questão étnica e a problemática econômica estão imbricadas. E, no que se refere à nacionalidade, a questão étnica é fundamental. Ela, de certa forma, “precede” a econômica, pois o Brasil que “não se resolve”, que não se coloca no seu próprio eixo, dificilmente resolverá seus problemas econômicos. Resolver para quê? Para quem? Se não são as pessoas nem a sociedade que são visadas… Se o Brasil nem existe como verdadeira nação…

Sim, porque o apartheid à brasileira não é apenas social. Ele é também étnico/racial. O simulacro de cordialidade e de democracia racial esbarra na clareza estatística dessa exclusão e na limpidez das nossas percepções visuais. Como fazer abstração dessa dolorosa realidade? Até onde irá a conivência “inconsciente” com o sistema de exclusão? Pode-se pretender mudar o Brasil e ao mesmo tempo se identificar “inconscientemente” com os conquistadores? Pode-se pretender conduzir a maioria e, de forma subliminar, se identificar com a minoria? São questões às quais nós temos que, intimamente, responder. Esperamos que a responsabilidade social triunfe, por mais contraditórias que sejam as respostas. Independente de etnia ou cor, a todos que lutam pela libertação o apartheid deveria parecer INACEITÁVEL!

HISTÓRICO

Esta campanha tem origem nos Encontros Continentais Indígena, Negro e Popular, realizados desde 1989, como parte da reflexão sobre os 500 anos da chegada de Colombo à América. Esses encontros, em número de quatro, foram realizados respectivamente em Bogotá (Colômbia, 1989), Xelaju (Guatemala, 1991- onde foi incluída a temática negra), na Nicarágua e em S. Paulo (1995). Este último se referia aos povos negros das Américas e contou com a presença de delegações de 19 países. Foi aí que foi plantada a semente da campanha que ora nos ocupa. A participação do movimento negro, e sobretudo da CONEN (Coordenação Nacional das Entidades Negras), está na base desse movimento, no Brasil.

O Comitê Nacional da campanha propriamente dita foi criado em fins do ano passado e conta, além da CONEN, com a participação de movimentos indígenas e de setores do movimento social em nível nacional, tais como: CAPOIB (Coordenação e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), CIMI (Conselho Indigenista Missionário), GTME (Grupo de Trabalho Missionário Evangélico), CMP (Central de Movimentos Populares), CPT (Comissão Pastoral da Terra) e diversas outras entidades de abrangência local, estadual ou regional.


OBJETIVO

A campanha visa, em última instância, contribuir para a tomada de consciência, por parte da maioria dos brasileiros, da construção do país e dos processos geradores da exclusão. Espera-se que este conhecimento contribua, decisivamente, para a eliminação do mal-estar identitário – mal endêmico num país cuja descolonização nunca foi completamente encetada – e, consequentemente, para a consolidação da identidade brasileira. Isto por sua vez nos levaria à legitimação do país como verdadeira nação.

ESTRATÉGIA: O GRANDE DESAFIO

O projeto é vasto, mas tem fortes chances de atingir seu objetivo, pois pretende agir não apenas sobre as consequências da conquista e colonização, mas também sobre a raiz do problema, ou seja, sobre o etnocentrismo europeu (lusocentrismo/ eurocentrismo). Par isto aproveitaremos a oportunidade oferecida pelo V Centenário do “Descobrimento” do Brasil. A campanha que ora iniciamos terá seu ponto alto em abril do ano 2000, mas não se esgotará aí.

Nossa ação se concentrará basicamente em dois vetores críticos, que estão interligados:

. A crítica ao colonialista projeto oficial para essas comemorações.

. O questionamento do conceito do descobrimento, enquanto operador lógico-simbólico do sistema de exclusão.

Pretendemos promover esta tomada de consciência através da informação e mobilização da opinião pública, sobretudo em manifestações de massa. E principalmente em torno do segundo vetor crítico, ou seja, do questionamento do descobrimento – ver os dois artigos em anexo: “O descobrimento que não houve” e “Nós não falamos a língua dos lusitanos“. Nós demonstraremos que, para além da ofensa, o conceito do descobrimento carece de sustentação empírica; e que isto é emblemático de como obraram para nos excluir do processo histórico, enquanto protagonistas. De forma insidiosa, tentaram destruir nossa auto-estima, tentaram nos demover de qualquer pretensão legítima a assumir essa terra; assim, os beneficiários da exclusão nos tiravam boa parte do poder de iniciativa, eles ficavam com as mãos livres para agir, inclusive em matéria econômica.

O contexto político é favorável à mudança. Além da crise econômica, a campanha se realiza num contexto de ruptura com a visão colonialista e, logicamente, de derrocada do também colonialista projeto oficial para o V Centenário. Vários indícios apontam para essa direção: o dissimulado recuo governamental em relação ao tragicômico “Museu Aberto do Descobrimento” (MADE) começa a ganhar as consciências; dele subsiste um subprojeto – o “idílico” Memorial do Encontro – que padece do mesmo viés lusocêntrico do projeto-mãe; por outro lado, aliados a uma poderosa rede de televisão, os mais altos dignitários do país eliminam, dissimuladamente, a palavra “descobrimento” de seus discursos – numa tentativa de embaralhar os dados para mais uma vez mudar sem nada mudar. O nosso grande desafio consiste em impedir que essa “esperteza” leve a melhor.

Essa campanha é por si só ousada e deve se pautar pela galhardia. Não pela lamúria, que é desmobilizadora. Outra coisa que é preciso ter em mente: os grupos mais claramente caracterizados como “vencidos” – índios e negros – têm vocação para conduzir todo o processo.

MANIFESTAÇÕES PREVISTAS

. Manifestações de rua durante o ano de 1999 e 2000, nas principais datas cívicas nacionais ou estaduais.

. Grande marcha de negros, quilombolas, índios e provavelmente dos sem-terra para Porto Seguro, em abril do ano 2000. Manifestações locais estão programadas.

Vencidos? Até quando? A ruptura é irreprimível! Nós vamos refundar o Brasil.
E vamos precisar do seu apoio.

Conheça mais sobre o projeto