*Última grande matéria produzida por Biondi, feita para a Revista dos Bancários.
 

Fremindo de emoção. Voz indignada. Colocando à mostra a vocação teatral revelada em confidências a artistas, o presidente Fernando Henrique Cardoso não deixou por menos: investiu pesadamente contra os agricultores que reivindicavam novos prazos para pagar suas dívidas, "inchadas" por distorções de todo tipo. “Não permitirei. Não permitirei que caloteiros contumazes embolsem o dinheiro do povo, o dinheiro da saúde, da educação…”, bradou ele, no papel de novo Pai do Povo. Sem crédito, sem preços, sem garantia de venda das safras, 4,8 milhões de agricultores passavam a enfrentar uma nova praga: ficaram marcados, a ferro em brasa, com a imagem de "inimigos públicos". Para garantir que o rótulo permaneceria na memória dos brasileiros, o governo FHC foi mais longe: como sempre, convocou a grande imprensa para entregar material transformado em reportagens sobre “a doce vida dos caloteiros”, com casas hollywoodianas e piscinas deslumbrantes. Isso foi lá pelos idos de 97. Em janeiro deste ano, em uma entrevista-balanço sobre seus primeiros cinco anos de governo, a Folha de S.Paulo perguntou ao presidente qual o maior erro que ele considerava ter cometido no período. Sem pestanejar, FHC respondeu: “chamar os agricultores de caloteiros. Eles realmente não podiam pagar aquelas dívidas”. E mais: “eu não sabia disso naquela época”.

 

2ª praga: A bancada urbanista – A comovente confissão do presidente de pouco valeria em termos práticos, para os agricultores, já que ela só chegou depois de centenas de milhares deles terem "quebrado" e terem seus sítios e fazendas vendidos ou confiscados e leiloados pelo Banco do Brasil. Mas, de qualquer forma, ela poderia ter trazido benefícios "morais", contribuindo para limpar a imagem da agricultura, isto é, para combater a "praga do carimbo de caloteiros". Nem isso ocorreu, pelo fato puro e simples que o mea-culpa foi publicado sem destaque, "perdido", em meio a um texto gigantesco, e não foi visto por ninguém (ao contrário das reportagens desmoralizantes). Pode-se supor, aliás, que essa discrição toda tenha, exatamente, atendido aos desejos presidenciais. Afinal de contas, não foi apenas em 97 que FHC bateu duro nos "caloteiros".

Essa ação governamental tem sido facilitada por outro preconceito realimentado pela imprensa: a existência da chamada "bancada ruralista" do Congresso. Ninguém estranha que todos o setores econômicos, ou classes sociais, tenham representantes no Congresso Nacional, e lutem para que reivindicações de seus representados sejam levadas em conta. No entanto, toda e qualquer questão ligada à agricultura é imediatamente apresentada, pelos meios de comunicação, como defesa de interesses escusos, por parte dos parlamentares. A "bancada agrícola" virou "bancada ruralista", com conotações pejorativas. Ironicamente, a sociedade brasileira virou uma imensa "bancada urbanista", totalmente desinformada dos problemas dos agricultores – mesmo porque eles raramente conseguem espaço nos meios de comunicação, investidos nas funções de orientadores da "bancada urbanista" da qual, por questão de justiça, o presidente da República é o patrono de honra. A "bancada urbanista", sustenta-se, ela sim, de mentiras e falsificação de dados.


3 ª praga: Esquizofrenia presidencial
– O Brasil hoje importa cacau da África, ervilhas ou brócolis congeladas da França, tomate em lata da Itália, arroz do Paraguai, e batata da Argentina (que é há dois anos fornecedora preferencial da rede McDonalds no Brasil). Desde 1995, o governo FHC escancarou o mercado brasileiro às importações também de produtos agrícolas, que passaram de 2,5 bilhões para 7,0 bilhões de dólares por ano. O argumento foi o de sempre: incluir o Brasil na "globalização", extinguir o "paternalismo" e forçar o produtor nacional a aderir à modernidade, produzindo mais barato e melhor. FHC sabe que os países ricos dão enorme proteção a seus agricultores: os EUA gastam nada menos de 130 bilhões de dólares e a Europa uns 90 bilhões de dólares, em subsídios a seus agricultores. Isto é, a competitividade dos agricultores europeus e norte-americanos é subsidiada. Por quê? Porque a opinião pública dos países ricos sabe que a agricultura gera renda, consumo, empregos, isto é, mantém a economia em crescimento.

4ª praga: O crédito falso – O governo anuncia “pacotes agrícolas”, com bilhões de reais de crédito para os produtores. Manchetes. A opinião pública se ilude. A realidade é outra. A equipe econômica/FMI (e o presidente?) não libera. E os bancos privados e, nos últimos anos, o próprio BB, apresentam tantas exigências que exatos três milhões do total de 4,2 milhões de pequenos produtores ficam sem crédito, como esbraveja Manuel dos Santos, o presidente da Contag – Confederação dos Trabalhadores Agrícolas. Exemplo? No ano passado, o governo anunciou a disponibilidade de R$ 11,1 bilhões para os agricultores. De acordo com o próprio governo, foram liberados só R$ 7,6 bilhões. Nem essa cifra, porém, é verdadeira: segundo José Roberto Mendonça de Barros (um dos homens do presidente), só houve mesmo 2,5 bilhões de reais de dinheiro novo nas mãos dos produtores. Como assim? Naqueles 7,5 bilhões, estão incluídos nada menos de que 5 bilhões de reais de empréstimos “antigos”, que os bancos renovaram para os produtores. Segundo pesquisas da FGV, nada menos de que 84% dos produtores costumam usar seus próprios recursos para plantar, porque não têm acesso aos bancos.

5ª praga: Falsa modernidade – De acordo com o Censo Agropecuário realizado em 1995 e 1996 pelo IBGE, há (ou havia) no Brasil 4,8 milhões de propriedades rurais. Delas, nada menos de 4,2 milhões são pequenas propriedades, cultivadas pelas próprias famílias. Apenas 555 mil propriedades são patronais, isto é, com proprietários que contratam trabalhadores. Ao contrário do que a "bancada urbanista" pensa, as pequenas propriedades, ocupando apenas 110 milhões de hectares contra os 240 milhões de hectares das patronais, têm rendimento econômico muito superior, oferecem um Valor de Produção Bruto de R$ 104 por hectare, contra R$ 44 gerados pelas grandes. São responsáveis, ainda, por 80% dos empregos oferecidos pela agricultura, com um total de 13,7 milhões de pessoas ocupadas, sobre um total de 17,3 milhões de trabalhadores rurais. São esses milhões de agricultores que engrossam a legião dos sem-crédito, e que são as maiores vítimas das violentas altas e baixas nos preços de seus produtos. Há três anos, em encontro com a diretoria da Contag, o presidente da República assumiu o compromissou de criar um sistema de seguro agrícola no Brasil, mas ele continuou "engavetado". No Brasil, ao contrário do que pensa a "bancada urbanista", o agricultor não é indenizado por seguro, quando perde suas colheitas. O seguro existente, o Proagro, na verdade, se destina a proteger os banqueiros, pois apenas devolve ao banco o empréstimo feito ao agricultor, que arca com seus próprios prejuízos.

Um exemplo de como o governo FHC encara a função social da agricultura familiar foi fornecido pela política adotada para a sofrida região de Irecê, onde 20 mil famílias paupérrimas vivem da cultura do feijão. Tradicionalmente, o governo federal fornecia um crédito miserável, coisa de R$ 100 por ano para as famílias plantarem. Como a região vinha sendo freqüentemente atingida pela seca, com perda das lavouras, o governo decidiu que ela é “inadequada para o plantio do feijão”. Suspendeu o crédito de R$ 100 reais. Deixou 20 mil famílias entregues à própria sorte. Ou desgraça.

6ª praga: Falta de preços – Caminhões despejando toneladas de laranja, no chão do Vale do Anhangabaú. Por ter ocorrido em pleno centro de São Paulo, o fato não pôde ser ignorado pela imprensa, forçada a noticiar a manifestação dos produtores, em protesto contra a falta de preços para a fruta: apenas R$ 2 a caixa de 37 quilos, ou menos de cinco centavos o quilo (vendido a no mínimo R$ 0,30, com 500% de aumento, nos supermercados). Nos mais diversos pontos do Brasil, sem merecer holofotes, a perda de produtos por falta de preços para o produtor é constante. Ainda no primeiro semestre deste ano, carregamentos de cebola foram despejados à beira de estradas de Santa Catarina; plantações de batata não foram arrancadas no interior do Paraná; lavouras de feijão foram abandonadas no sul de São Paulo. Da mesma forma que os produtores tiveram que abater frangos antes da hora, para poupar gastos com ração, porque o frango estava sendo comprado a R$ 0,58 o quilo, na granja, contra o padrão de R$ 0,90. Situações de ruína para o produtor, que a imprensa nem olha. O Brasil retrocedeu décadas, em sua política de garantia de preços – e renda – ao produtor. Para produtos perecíveis, como laranja, batata, cebola, tanto o governo federal como governos estaduais costumavam adotar medidas de emergência, como a venda direta do produtor ao público, em fases de superprodução – e das quais nem se fala mais. Mas as grandes mudanças mesmo ocorreram com o arroz, feijão, soja etc.: o governo, por lei, era obrigado a entrar no mercado comprando safras, evitando grandes prejuízos ao produtor, e formando estoques que eram vendidos em épocas de escassez, para evitar altas exageradas de preços. Defendia-se assim tanto o interesse do produtor, na primeira etapa, como do consumidor, na segunda. Desde o começo do governo FHC, em 1995, alegando-se que essa política era "paternalista", ela foi suspensa. O produtor voltou a ficar nas mãos de atravessadores, e a viver em uma montanha-russa de preços.

7ª praga: otimismo fabricado – Em julho de 1998, o IBGE anunciou que a safra daquele ano estava sendo recorde, de 77,5 milhões. Meses depois, à surdina, surgiu o resultado real: 75,2 milhões de toneladas. Em julho de 1999, o então ministro da Agricultura, Fernando Turra, alardeava previsões de aumento no plantio capaz de assegurar uma safra estrondosa, de 90 milhões de toneladas, para este ano. Ela vai ficar entre 83 e 85 milhões de toneladas, igual ou abaixo da de 1999 – quando a produção cresceu ajudada por excelentes chuvas no Nordeste, que acusou recuperação de 40% em sua produção, após igual queda em 1998. Na verdade, com todos esses pretensos "recordes", a agricultura está patinando na faixa de 80 milhões de toneladas, bem próxima dos níveis de produção de 1995, quando a safra chegou aos 81milhões de toneladas – e foi um desastre total para os produtores. Na hora da comercialização,o governo inaugurou sua nova “política”, não comprou a produção, ao mesmo tempo em que escancarava o mercado e impulsionava as importações. Os preços despencaram, arruinando os produtores – e a agricultura contribuiu, assim, para "segurar" a inflação e garantir o sucesso do Plano Real. Sem preços, sem crédito, com as dívidas sendo executadas, os produtores reduziram o plantio, que recuou de 39 milhões de hectares em 94 para 35 milhões, em 1998, e a produção despencou das 81 milhões de toneladas, em 1995, para 73 milhões, em 1996, e 78 milhões, em 1997, recuando para 75,2 milhões, em 1998, e só voltando a crescer, para 84 milhões de toneladas, no ano passado. Resumo desse massacre, segundo o economista Fernando Homem de Mello, da Universidade de São Paulo: os preços agrícolas caíram 16%, e a renda anual dos agricultores recuou de 63 bilhões de reais para 59 bilhões de reais no período 1995/98, na comparação com o período anterior, 1990/94. Foram praticamente 4,9 bilhões de reais a menos por ano, ou 16 bilhões de reais perdidos em quatro anos, agravando-se ainda mais a situação financeira do setor – e a necessidade de renegociar sua dívida "inchada" por distorções. Enquanto isso, graças às exportações para o Brasil, a Argentina dava um salto na área agrícola, com aumento de 40% em sua produção, de 46 para 63 milhões de toneladas. Preços mais baixos? Não. O governo argentino tem uma política de crédito para o setor, e as exportações são financiadas para pagamento em de 180 a 360 dias, a juros de 8% ao ano. Aqui esse dinheiro gira a até 40%, em algumas épocas. Trigo, algodão, lacticínios foram produtos brasileiros que "encalharam" aqui, destronados pela avalanche Argentina. Constantemente, o governo diz para a bancada governista que a queda na renda agrícola se deveu ao declínio das cotações internacionais de importantes produtores. A explicação é falsa para o período de 1994 a 1998, reitera Fernando Homem de Melo: as cotações internacionais até subiram nesse período, mas o agricultor brasileiro perdeu porque o dólar permaneceu “congelado”, barateando os produtos importados e dificultando as exportações, ao mesmo tempo em que a suspensão das compras do governo deixava o produtor desamparado no mercado. Com a desvalorização do real, no ano passado,o governo previu grandes compensações para os agricultores, com preços maiores em reais, e chegou a alardear um aumento de 13% na renda agrícola. No final das contas, a renda agrícola caiu 0,7%, por dois motivos que o otimismo do governo teimou em ignorar. Primeiro: houve violenta alta de fertilizantes, inseticidas etc. porque, com a desnacionalização da economia, multinacionais suspenderam a produção local e passaram a importar maciçamente esses produtos, pagos em dólar. Segundo: por falta de crédito bancário produtores recorrem largamente às compras a prazo, financiadas por essas multinacionais – com valores também fixados em dólar.

Para este ano, a previsão é de um crescimento modesto, de apenas 0,4% na renda agrícola, porque, ironicamente, agora há realmente queda dos preços agrícolas no mercado mundial. Para recuperar o ritmo de crescimento pré-FHC, a agricultura brasileira passa a depender de mudanças na visão que a "bancada urbanista" tem do setor. Essa virada pode levar o governo a implantar políticas adotadas em outros países: crédito para milhões de famílias plantarem, compra de colheitas para assegurar preços estáveis, limites justificáveis às importações, seguro contra perda de colheitas. Falta imitá-los. Por quê?

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