“A maioria dos educadores de São Paulo passou os últimos oito anos evocando essa experiência.”


Por Selma Rocha*

Este artigo é uma forma de celebração que, gostaria eu, pudesse ser discreta em meio às homenagens dirigidas a um mito que faria, se vivesse, 80 anos. Os mecanismos de criação de um mito, tão complexos quanto perversos, servem a toda sorte de interesses. Instituem-se como uma espécie de abrigo a procedimentos tão contraditórios quanto aqueles referentes ao discurso teórico ou político, que apela ao imaginário de esquerda para operar uma prática de direita.

curioso homem curioso

Por isso, prefiro falar de um homem: Paulo Freire. Um homem, como ele desejava ser lembrado, que “amou, tentou saber e foi um ser constantemente curioso”.

Ao fazê-lo não quero falar mais do que posso e sei, isto é, não quero apostar no mito e, ainda menos, dele me utilizar. Esta é a forma que considero digna de homenageá-lo. Detenho-me, portanto, a falar de um aspecto de sua obra e de sua conduta quando foi desafiado a praticar o que pensava em escala de Estado, à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (entre 1989 e 1990). Período de convivência curto, porém de grande intensidade, pois estavam em questão sonhos e poder.

Creio que a contribuição mais importante de Paulo Freire não foi criar um método de alfabetização que conscientizava e politizava pessoas.

Ele fundou uma teoria sobre o conhecer: uma filosofia (não apenas um método) e, ao fazê-lo – peço licença aos seus críticos -, tornou explícito o caráter de classe da pedagogia e das políticas educacionais que tornaram, por seus fundamentos, impossível às gerações de trabalhadores e seus filhos construir conhecimento.

Ação transformadora

Paulo Freire afirmou de várias formas, em suas obras, que para que o educando se aproxime do conhecimento é preciso que os educadores reconheçam seus saberes e, deles partindo, possam contribuir para que os superem.

Afirmou também que não há conhecimento sem contexto, de quem “ensina e de quem aprende”. E que, portanto, a dialogicidade nas relações entre educandos e educadores é imprescindível para que acessem a cultura e suas condições de produção na sociedade de classes.

Paulo Freire foi muito criticado por isso. A ele se atribuiu a idéia de que tal concepção levaria o educador a “girar com o educando em torno do senso comum” impedindo, dessa forma, que os últimos tivessem acesso à cultura e à comunicação, através da leitura e da escrita.

À frente da Secretaria de Educação de São Paulo, Paulo Freire pôde responder a essa crítica. A política educacional desenvolvida, em particular no que toca à qualidade, se pautou por um movimento de reorientação curricular que permitiu, através da formação permanente dos educadores e das discussões nas escolas e salas do MOVA, que nos espaços educacionais se tomasse a experiência dos alunos (crianças ou adultos) como ponto de partida para a transformação de seus conhecimentos. A universidade veio, em nosso auxílio, participando da formação e das experiências interdisciplinares. Ética e pedagogia se fundiram na experiência de construir conhecimento e não, mecanicamente, reproduzi-lo.

A maioria dos educadores de São Paulo passou os últimos oito anos evocando essa experiência.

Outra crítica contundente feita a Paulo Freire diz respeito à ausência do conceito de classe em sua Pedagogia do Oprimido. Os conceitos de “povo” e “oprimido” abrigaria imprecisões que se prestariam a concepções e práticas, na melhor das hipóteses, populistas. Paulo Freire em “Pedagogia da Esperança” respondeu, com grande lucidez, a tais críticas. Mas, há um fato sobre o qual Paulo Freire não pôde se manifestar. Na madrugada de 3 de maio de 1997, enquanto velávamos seu corpo na PUC de São Paulo, lá pelas duas horas da manhã, aproximou-se timidamente de seu caixão uma Senhora que, ao observá-lo morto, debruçou-se sobre ele e chorou muito, por muito tempo.

Síntese da teoria e prática

Como éramos poucos no local e não reconhecemos aquela mulher, fui até ela e perguntei-lhe quem era. Respondeu-me que tinha se alfabetizado no MOVA, que seguia estudando (agora num curso de magistério) e que ninguém nunca entenderia o que aquele homem generoso e a possibilidade de ser alfabetizada significaram em sua vida. Abracei-a e sentei-me novamente em silêncio. Não havia nada a dizer.

Só fui capaz de pensar, certa de que não fazia uma análise ingênua ou apressada, que enquanto o presidente afirmava que Paulo Freire “tinha tido sua época” e muitos dos intelectuais, seguidores de seu ideário político (que cobraram tantas precisões conceituais), já não acreditavam mais em conceitos de classes, eu tinha em minha frente a síntese histórica dos caminhos que conduziram à teoria e à prática da Pedagogia do Oprimido.

Os conceitos de povo e opressão estavam claros em sua obra. De emancipação também.


*Selma Rocha, historiadora e chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Educação
Artigo publicado na edição 108 do jornal quinzenal PT Em Movimento (circulação de 5 a 20 de outubro de 2001)

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