Leia entrevista de Lula ao jornal O Globo
Lula fala sobre ex-presidentes, tolerância, sua infância, entre outros assuntos.
Lula, de sobrevivente da fome a líder político*
Por Jorge Bastos Moreno
Enviado especial
SÃO PAULO. Ele quis ser motorista de caminhão. Mas tinha de ser aquele amarelo da Shell, que via passar na Rio-Bahia quando foi trazido ainda menino pelos pais. Na grande capital, passou a correr atrás do caminhão do Corpo de Bombeiros e mudou de idéia: bombeiro, para ele, passou a ser a coisa mais fascinante! Aos 14 anos, achava bonito ver, na porta de casa, os operários passarem com seus macacões sujos de graxa em direção às fábricas. Não teve dúvidas. Nem motorista de caminhão nem bombeiro. Seguiu a profissão de metalúrgico.
Estava longe, até então, de imaginar que, aos 33 anos, seria mais do que um representante, mas porta-voz mesmo do então candidato por uma das sublegendas do MDB ao Senado, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Hoje, aos 56 anos, o maior líder político da América Latina dos últimos 20 anos disputa pela quarta vez, novamente como favorito, a eleição para a Presidência. Duas ele disputou e perdeu para o mesmo homem que o fez, em 1978, trocar, pela primeira vez, o macacão pela camiseta de um partido político.
Luiz Inácio Lula da Silva, pernambucano de Garanhuns, sobrevivente, ao fazer um retrospecto de sua vida, conclui:
— Deus foi muito generoso comigo…
Solidariedade vem da infância
Lula reconhece que hoje tem o respeito, inclusive dos adversários, que poucos políticos já tiveram nos últimos anos, como Ulysses Guimarães, uma de suas principais referências políticas. Quem vê o candidato do PT, contundente, criticar o governo Fernando Henrique e as velhas oligarquias que o sustentam é incapaz de imaginá-lo horas depois, no leito de um hospital, visitando o senador José Sarney, ou mesmo a sua filha e governadora do Maranhão, Roseana Sarney. Ou ligando para o próprio Fernando Henrique para convencê-lo a resolver uma greve de fome de presos. Incoerência? Não. Solidariedade.
Solidariedade que Lula conheceu quando, no primeiro e único mandato de deputado federal, na Constituinte, foi submetido a uma cirurgia de emergência. Quando voltou da anestesia, na beira da cama, em silêncio, uma figura esguia mas inconfundível estava lá quase o guardando: Ulysses Guimarães, o então condestável da Nova República.
Solidariedade que aprendeu na dura resistência de um sobrevivente nordestino. Lula é de uma família de oito irmãos, sete deles vivos. Mas na verdade são 12, somando todos os filhos tidos pela mãe. E 27, se contarem os 15 do pai com outra mulher, com quem foi viver logo que se separou de sua mãe, já em São Paulo.
Dona Eurípides, mãe de Lula, morreu em maio de 1980, tendo portanto a felicidade de testemunhar o auge da liderança do filho na greve do ABC.
— Minha mãe foi uma heroína, pois sempre tratou de dar o máximo necessário para a gente comer. Se passei fome? Diria que sim. A gente passava muito tempo, semanas e semanas, comendo só caldo de feijão. Quando aparecia um pouco de carne moída, a mistura era uma festa!
Mais do que uma conversa para contar a história de sua vida, Lula fez uma reflexão, apontando erros e acertos, sobre uma das mais importantes trajetórias políticas de um brasileiro.
A INFÂNCIA: Vim menino para São Paulo. Naquele tempo, a rua era nossa. A gente não pensava em seqüestros, violência. A gente ia para a escola, voltava e ia brincar. A rua era nossa até 11 da noite, uma da manhã… A gente brincava de coisas que a molecada hoje nem conhece.
A FÁBRICA: Meu primeiro contato com a fábrica foi com uma metalúrgica que fabricava parafusos: fábrica de parafusos Marte. Ela que me mandou para o Senai. Antes, tinha trabalhado num armazém que recebia cargas de algodão. Mas foram só seis meses. Perdi o dedo em 1964. Já estava formado em torneiro mecânico e trabalhava na metalúrgica Independência.
A POLÍTICA: Até 78, na minha cabeça não cabia a política partidária. Tinha ojeriza da política. Achava que era esperteza de minha parte dizer: não gosto da política. Acontece que em 78, primeiro ano das greves do ABC, o MDB estava lançando sua chapa de senadores. Algumas pessoas, alguns jornalistas cujo nome não vou dizer, queriam que a gente apoiasse Cláudio Lembo, da Arena. Fui apresentado a Fernando Henrique Cardoso. Aí fomos para a campanha. Fui representar Fernando Henrique Cardoso em vários comícios. Em Cruzeiro, onde Ulysses Guimarães tinha uma base forte, Fernando Henrique Cardoso não pôde ir. Fui no lugar dele. Achei que foi uma vitória, porque Fernando Henrique Cardoso teve mais votos do que Cláudio Lembo.
O SURGIMENTO DO PT: Aí começou a surgir a idéia de que a gente precisava se filiar a um partido. Essa coisa demorou a rolar. Depois vieram as greves de 79. Criamos aí um movimento pró-PT. Tivemos uma grande reunião em São Bernardo do Campo com mais de 70 deputados do MDB. Tudo que era autêntico do MDB estava lá: Alceu Collares, Chico Pinto, Jarbas Vasconcelos, Marcos Freire, Walmor de Lucca, Airton Soares, Cristina Tavares, Fernando Lyra, Alencar Furtado, Almino Afonso e Fernando Henrique Cardoso, entre outros. Surgiram aí algumas discordâncias. Uns achavam que não podíamos ter um partido dos trabalhadores. Outros, que não era hora de criar partido e que deveríamos ficar todos em torno do PMDB. Eu achava que o PMDB não podia representar o conjunto das classes trabalhadoras. Eu achava que os sindicatos não poderiam ser apêndices do PMDB. Já que era para criar um partido, era preferível criar o nosso. E resolvemos criar. Aí, em 80, fomos ficando mais importantes e o Fernando Henrique Cardoso foi se afastando dessa idéia e já foi imaginando que o Franco Montoro, de quem era suplente, poderia ser eleito governador em 82 e ele assumiria quatro anos de mandato. E foi se afastando da gente.
Um gatinho entre personalidades
OS POLÍTICOS QUE ADMIRAVA: Uma coisa engraçada é que, quando a gente está fora do mundo político, todas as pessoas que aparecem na televisão são personalidades. Ulysses Guimarães era uma figura que eu tinha na mais alta conta. Tinha o Franco Montoro… Quem não se lembra das campanhas de Ulysses Guimarães contestando Geisel, ou de sua anticandidatura? Quando eu ia para um palanque onde essas pessoas estavam, era uma coisa nova para mim! Eu me sentia assim…. um gatinho no meio dessas personalidades todas. Mas sempre tive muito respeito pelo Ulysses Guimarães. Gostava muito de Pedro Simon, Jarbas Vasconcelos e Marcos Freire.
A VERGONHA DO SOFÁ: Jarbas Vasconcelos foi uma pessoa que me visitou em casa. Eu me lembro disso como se fosse hoje. Tinha um sofazinho velho rasgado lá na minha casa. Tinha vergonha que as pessoas fossem lá por causa do meu sofá. Botava um cobertor em cima para esconder a parte rasgada. Um dia chega lá em casa o Carlos Villares, dono da Fábrica Villares, para conversar comigo e o sofá lá todo rasgado. Tratei logo de meter um cobertor em cima… Jarbas Vasconcelos, eu me lembro, estava sentado no sofá. Eu morava numa casinha três por três. Cada quarto tinha três por três. Eu estava lá conversando com o Jarbas e, de repente, uma baratona desse tamanho vai passando e o Jarbas a esmaga com o pé! (Lula conta o episódio escondendo o rosto feito menino envergonhado).
A AMIZADE: Aprendi que as divergências políticas não podem ser confundidas com as relações humanas. Por exemplo, tenho companheiros extraordinários de 30 anos que hoje são adversários do PT, nas cidades onde moram. Não abro mão dessas amizades. São as únicas coisas que vou levar da vida quando morrer. Fernando Henrique Cardoso e eu estamos afastados pelas contingências. Não tenho problema pessoal com Fernando Henrique Cardoso. Tenho divergências na condução que ele está dando à economia. Mas, do ponto de vista pessoal, não tenho nada contra ele, como nunca tive com Ulysses Guimarães. Eles sempre me trataram com o maior respeito, com a maior dignidade. Na verdade, no fundo, no fundo, eles pensavam: “O Lula é uma pessoa respeitada no movimento sindical, nunca vai disputar conosco”. Era um pouco assim. Nem eles tinham noção de que o PT fosse crescer tanto.
A SOLIDARIEDADE: Quando o Sarney estava hospitalizado, fui visitá-lo. Quando a Roseana também estava no hospital, fui visitá-la e torci pela sua recuperação. O Sarney, quando eu estava sendo atacado nas eleições de 98, fez um artigo na “Folha de S.Paulo” me defendendo. A relação de amizade não pode ser confundida. Por mais que uma pessoa seja seu ferrenho adversário, se ela não tiver nas costas a pecha de mau caráter, de corrupta ou de bandida, mas se for uma pessoa com quem você só tem divergências políticas, você deve respeitá-la. A relação humana tem que preceder a divergência política.
A LIDERANÇA E O RESPEITO: Acho que o dr. Ulysses e outros companheiros do PMDB da década de 70, até 78, 79, tiveram um papel muito importante na história. A diferença é que essas pessoas não conseguiram se firmar na política como eu porque eles não tinham partidos, tinham shopping: cada um com seus interesses, vendendo seu produto. Não tinham um partido de verdade como o PT. Evidentemente que a concepção política da época era diferente. Não tiveram a origem que tive. Não nasceram na política como nasci. Não decidi ser político e entrar para a política. Fui introjetado na política pelas coisas que iam acontecendo na sociedade. Passados todos esses anos, sinto muito orgulho. Nunca disse que sou resultado da minha inteligência ou da minha competência. Sou resultado da evolução política de uma parcela da sociedade. Apareci no momento exato. Obviamente tive o mérito de saber traduzir aquilo que era o pensamento daqueles que representava. Uma coisa que prezo muito é o respeito. Respeito muito as pessoas e gosto de ser respeitado. Fico muito feliz quando vejo uma pessoa de direita, que não gosta do PT nem do que penso politicamente, mas me respeita. É assim que a vida deve ser. Quero respeitar os outros e quero ser respeitado. Não tento fazer mal para ninguém e não quero que ninguém faça mal a mim. Quero disputar democraticamente o poder neste país.
‘A elite não me quer no poder’
A ELITE: Tenho realmente a sensação de que a elite não me deixou chegar ao poder. O que aconteceu em 89 foi decisão da elite política. Quando eles perceberam que a gente poderia ganhar, eles se juntaram, gastaram o que não tinham, inventaram o que podiam inventar para evitar que chegássemos lá. Lamento muito que a elite política brasileira tenha tido esse comportamento. É bem verdade que não tinha obrigação de votar em mim, mas, com todo o preconceito que ela tinha, não poderia ter votado no Collor. Eles poderiam ter votado no Covas ou no Brizola, mas jamais poderiam votar numa figura como Collor! De qualquer forma, isso faz parte da história do Brasil. E foi a nossa performance em 94 que permitiu que a elite aceitasse Fernando Henrique Cardoso como seu porta-voz. É importante lembrar que Fernando Henrique Cardoso chegou à Presidência em 94, mas em 85 perdeu a eleição em São Paulo porque era comunista e ateu. Isso também faz parte do jogo e aprendi a não ficar lamentando gols que não marquei.
A NOVA SOCIEDADE: Não fiz nada para mudar o pensamento da elite a meu favor. Há uma evolução natural da sociedade, da classe política e, conseqüentemente, minha também. Veja, os 800 mil empresários que, segundo Mário Amato, iam deixar o Brasil se eu ganhasse a eleição em 89, faliram ou quebraram. Hoje você tem outra concepção do empresário brasileiro. Depois do processo de privatização, as velhas empresas familiares já não têm mais o peso que tinham na política nacional. As empresas multinacionais são representadas por gente que até pode não gostar do PT, mas são empresas com dirigentes em países com experiências muito mais fortes do que a nossa, de disputas, de guerras, como Espanha, Itália e Alemanha. O perfil do empresário brasileiro hoje é de 40, 45 anos e não mais aquela velha oligarquia de 80, 90 anos. Essa classe empresarial tem gente evoluída, com visão social, com preocupação com o consumidor. Muita coisa boa está acontecendo neste país, não com a pressa que gostaria que acontecesse.
O NOVO LULA: Também evoluí. Hoje, o empresariado não é mais o mesmo da década de 80. O movimento sindical já não é mais o mesmo. O mundo do trabalho já não é mais o mesmo. Comecei a compreender cada passo que quero dar. A gente vai ficando mais velho, mais cansado e vai dando os passos mais planejados. Não tenho a mesma pressa dos meus 3 anos. Não adianta ficar em baixo do pé de uma árvore gritando para a fruta amadurecer, que quero comer. Vou ter que esperar a fruta amadurecer para depois comer. As experiências administrativas do PT nos ensinaram muita coisa. Temos coisas fantásticas acontecendo no país. Aprendi, por exemplo, a melhorar meu relacionamento com a imprensa. Sempre tive um problema muito grande de relacionamento com a imprensa brasileira. Acho que grande parte da imprensa brasileira é uma imprensa de classe, que tem laços políticos, embora diga que não tenha. Mas, ao mesmo tempo, acho a imprensa imprescindível para o processo democrático. Não seria o que sou se não fosse a imprensa. Mesmo falando mal de mim, ela é obrigada a falar. Mesmo que ela não queira, eu existo. Isso ela tem que levar em conta, às vezes mais mal-humorada, às vezes de má-fé ou às vezes mais branda.
TOLERÂNCIA: Tolerante sempre fui. O ser humano, no fundo no fundo, é resultado da sua experiência de vida. A idade serve para a gente ir se calejando. Um jogador de futebol, um esportista qualquer, o auge da vida dele não é aos 16 anos. Quando isso acontece é coisa excepcional. O auge da vida dele começa aos 20 e termina aos 30. Nessa idade, todos somos mais impetuosos. Temos mais vigor físico. Temos mais pressa. Mas vai chegando um tempo em que a gente vai percebendo que a história não se adapta ao nosso tempo de vida. A gente é que tem que se adaptar à história. Você não muda a história no tempo que você pensa mudar. A história é um processo. E você vai aprendendo isso, vai conversando com mais gente. Tenho a consciência de que foi muito importante para o PT ter a radicalidade que teve para poder se firmar como partido político. Sem isso a gente não seria um partido, mas uma tendência do PMDB.
O SONHO: Agora que o PT está próximo de chegar ao governo, o PT precisa saber que a tarefa de governar, ou seja, colocar em prática nosso sonho, é mais difícil do que sonhar. Governar é a arte de realizar aquilo que você cobra do adversário.
TETO ELEITORAL: Inventaram essa mentira de que tenho um teto nas pesquisas e tentam passar isso como verdade. Em 89, tive 16,5% dos votos no primeiro turno. Essa foi a votação do PT, a minha votação. Depois, já no segundo turno, com o apoio dos outros partidos, fui para 47% dos votos. Em 94, fui para 24%. Cresci quase oito pontos. Em 98, fui para 32%. Quero saber quem é que tem esse teto no Brasil.
DEUS: Acho que Deus foi muito generoso comigo. A probabilidade de uma criança nascida nas minhas condições sobreviver já demonstra que Deus foi generoso comigo. Eu carrego um sonho. Foi para isso que criamos o PT, para que um dia a gente possa fazer um país diferente. Para isso não é preciso fazer nenhuma revolução. Basta a vontade política de fazer. E não se faz com o Ministério da Fazenda dirigindo o país. É preciso definir prioridades. Quem tem que dirigir o país é o Ministério do Planejamento. O mandato de um homem passa, mas o planejamento do país não termina. Se você fizer a coisa certa, moralmente o outro governo que vier depois vai ter que seguir o seu projeto.
‘Eu jamais poderia ter ido ao segundo debate com o Collor do jeito que fui’
FERNANDO COLLOR: Se tenho mágoa do Collor? Não, não sou homem de guardar mágoa de ninguém. Mas não vamos colocar o Collor no rol dos políticos brasileiros. Nunca o coloquei. Quando você analisa um político, gostando ou não dele, você analisa o passado, a tradição dele. O Collor fez da política uma brincadeira. Com o dinheiro e o poder de seus veículos de comunicação em Alagoas, resolveu partir daí para chegar ao poder. Na época, claro que fiquei profundamente magoado, porque fui o único ser humano do planeta a ser condenado porque tive um filho com outra mulher, quando era solteiro. Era a coisa mais natural do mundo, pois não era filho fora do casamento. Não fiquei com medo de um suposto dossiê que estava na sua pasta no debate. Olha, isso é uma grande balela! E faz parte do folclore da política brasileira.
FERNANDO HENRIQUE: Confesso que muitas vezes já tive vontade de ligar para Fernando Henrique e, apelando para a convivência pessoal, alertá-lo sobre as coisas erradas do seu governo. Certa vez, atendendo a um pedido dele, fui a Brasília para conversarmos. Senti naquele encontro que a gente não tinha muito o que conversar. Percebi que ele não era capaz de se convencer de que tinha cometido um erro. Tem gente que é assim, prefere continuar errando do que dizer: “Olha, eu errei, vamos mudar”. Depois tive contato com ele por ocasião do episódio dos presos que seqüestraram o Abílio Diniz. O pessoal estava em greve de fome, tinha parado de beber água. Liguei para o Fernando Henrique e lhe disse que ele não poderia carregar na sua biografia a morte dessas pessoas. Ele disse para avisar que iria mandar libertá-los. Fui ao hospital em 31 de dezembro de 1998, conversei com os presos e liguei para Fernando Henrique dizendo: “Olha, conversei com os presos”. Ele cumpriu a palavra. Outro dia encontrei o Paulo Renato no Incor. Conversamos. Não tenho uma relação maior com o Paulo Renato, mas tenho com o Serra. Tinha uma relação muito boa com o Tasso Jereissati, mas hoje estamos muito distanciados. Mas se o encontrar, o tratarei com o maior respeito.
OS ERROS: Teria feito tudo outra vez. Só não teria cometido o erro de não ter ido conversar com Ulysses Guimarães no segundo turno de 89. Esse é um erro que assumo. Não gosto de ficar dividindo responsabilidades nos erros. É mais fácil conseguir dividir responsabilidades nas glórias do que nos erros. Se tivesse acreditado na aliança com o PMDB, teria bancado. Achava que não ajudaria. Por coincidência, perdi do Collor com a diferença de votos que teve o Ulysses Guimarães. Outro erro que cometi foi o de não ter tido uma influência maior no governo Itamar. Na medida que o PT decidiu não participar do governo, achei que não deveria mais participar das reuniões. Devo ter cometido um milhão de erros. Mas esses foram os mais marcantes. Cometi outro erro grave, mas do ponto de vista pessoal. Mas obviamente que o partido poderia ter me ajudado a pensar nisso: eu jamais poderia ter ido àquele segundo debate com o Collor do jeito que fui. Eu deveria ter ido àquele debate com a finalidade expressa de execrar o Collor: moral, ética, politicamente. Deveria ter dado uma esculhambada nele, no começo ou no fim. Mas aí a gente não discutiu antes. Não adianta ficar reclamando depois. Gol perdido não vale.
MPB: Eu tinha uma grande afinidade com a Elis Regina, não apenas musical — eu a achava a mais bela cantora deste país, para não dizer do mundo — mas uma afinidade ideológica. Em 1979, a gente, em greve, fazia show para arrecadar dinheiro e lá estava a Elis, o Gonzaguinha, o Djavan. Tenho afinidade política com alguns.
CHICO BUARQUE: Confesso que meu preferido é o velho Chico, porque é uma coisa mais carnal. Primeiro, porque o pai é pernambucano. Segundo, o pai é fundador do PT e a mãe é petista. O Chico nunca deixou a gente só, no meio do caminho. Gosto dele. Do ponto de vista de inteligência musical, acho que ele incomparavelmente é o melhor. Agora que estou com 56 anos, fico imaginando o que esse moleque fez, há 30 anos, de contestação ao regime militar.
REI POSTO: Eu gostava muito do Roberto Carlos. Eu já gostei mais do Roberto Carlos. Agora que ele está muito religioso, gosto menos dele. Ele está mais meloso.
CAETANO VELOSO: Fui ver o show do Caetano em Portugal. O Caetano é uma figura belíssima. Vi sua entrevista no GLOBO. Enquanto eu tiver o domínio de minha consciência, jamais vou me importar com a posição política de um artista. Não vou deixar de gostar de uma pessoa, de um artista, de um músico, porque ele é de tal partido. Não posso misturar arte com política. Eu, por exemplo, não sei nem em quem vota a Bethânia, mas acho hoje a Bethânia a mais extraordinária cantora deste país. Eu gosto dela, gosto da música dela. Se Deus quiser, um dia na vida ainda vou ver um show da Bethânia. Não quero nem saber em quem que a Bethânia vai votar. Só sei que a dona Canô é minha eleitora. Isso já é importante.
PATRULHAMENTO: Não vou exigir que os artistas sejam do PT. Não é assim que se procede. Quero que eles sejam bons artistas. Quero respeitá-los como artistas. Obviamente, se algum deles disser que vota no PT, tanto melhor. Por exemplo, uma das artistas do teatro e da televisão que eu mais admirava — digo no passado porque faz tempo que não a vejo — era Marília Pêra. Houve um incidente com ela aqui em São Paulo, por ocasião da campanha do Collor, em que eu nem estava presente, que deve ter deixado um trauma nela. Não perdi a admiração pela Marília Pêra porque ela votou ou não no Collor. A Cláudia Raia, que trabalhou para o Collor, foi mais visível isso, tem o direito de ter o pensamento político que quiser, sem nunca deixar de ser a grande atriz que é. Não misturo as coisas, senão a gente fica uma pessoa amarga a vida toda. Respeito os artistas do jeito que eles são. Outro dia mandei um recado para o Paulo Betti, que eu considero um grande ator, embora o meu ídolo maior seja Sérgio Mamberti. Eu mandei dizer: “Olha Paulo, gosto de você pelo que você já fez e não pelo que você vai fazer”. E vou lá deixar de gostar e de admirar o Paulo Betti porque ele fez crítica a mim? De jeito nenhum! Esse é o meu jeito de ser. Este coração velho aqui não tem lugar para mágoa… Acordo todo dia pensando que aquele dia só vai valer a pena para mim se eu não tiver ódio e mesquinharia no coração.
COMIDA: Não estou, no momento, podendo comer o que gosto. Estou fazendo um regime que impede que eu coma carboidrato, ou seja, uma bela de uma massa. Só posso beber água e refrigerante diet. Mas eu adoro uma rabada que eu e a Marisa fazemos no fogão de lenha, com polenta mexida durante duas horas, depois virada numa tábua de carne e cortada no cordão, no barbante. Ou então matar uma galinha caipira, botar numa panela de ferro, mexer a bichinha, fazer uma panelada de polenta e comer. Gosto de ficar no fogão tomando minha cachacinha. É chato político falar que toma cachaça, porque se criou a idéia no Brasil de que político tem que ser santo. Eu gosto de tomar minha cachacinha. Faz parte da vida. Respeito quem não gosta.
* Entrevista publicada no jornal O Globo, caderno Brasil, de 25/11/2001