Biógrafa do presidente analisa como o exemplo do pai déspota e da mãe corajosa exerceu influência sobre sua trajetória política.

Como Lula chegou lá*


Por Florência Costa

Biógrafa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a jornalista e historiadora Denise Paraná, uma paulistana de 37 anos, mergulhou na história da família Silva no início dos anos 90. Procurou explicar o comportamento e a trajetória de Lula a partir de um estudo multidisciplinar, cruzando sociologia, ciência política, antropologia, história, psicanálise e economia. Ela analisou profundamente a relação de Lula com os pais, Eurídice Ferreira de Mello, a dona Lindu, e Aristides Inácio da Silva, um casal de lavradores do sertão de Pernambuco. Para entender “de que barro foi feito Lula”, Denise realizou entrevistas longas, detalhadas e pontuadas por forte emoção com ele e seus seis irmãos vivos. O trabalho resultou em uma tese de doutorado, defendida em 1995 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). A partir daí, Denise lançou, no ano seguinte, o livro “O filho do Brasil: de Luiz Inácio a Lula”, hoje esgotado. O trabalho da historiadora provocou interesse no Exterior: em 1997 ela foi convidada para realizar seu pós-doutorado como Visiting Scholar (pesquisador visitante) na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Na quarta-feira 1º, enquanto Lula, o primeiro ex-operário a conquistar a Presidência da República na América Latina, tomava posse no Palácio do Planalto, uma nova versão da biografia chegava às livrarias. Editada pela Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, a obra ganhou novo título: “Lula, o filho do Brasil”. O livro possui um caderno de fotos inéditas, muitas delas do próprio arquivo da família do presidente, e foi acrescido de mais dois capítulos: uma entrevista com a primeira-dama, Marisa Letícia da Silva, e outra com Jacinto Ribeiro dos Santos, o Lambari. Ex-metalúrgico, ele foi o melhor amigo de Lula nos tempos de juventude e é irmão da primeira mulher do presidente.

IstoÉ – Por que você decidiu estudar a trajetória da família Silva como ponto de partida para compreender a formação da liderança política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
Denise Paraná – O historiador Peter Gay diz que estudar a história só do ponto de vista econômico e social, sem analisar o indivíduo, é como traduzir uma complexa sinfonia apenas assobiando; perde-se muito. Não se pode entender a sociedade sem compreender o indivíduo que a compõe. O método da psico-história com o qual trabalhei utiliza conceitos de psicanálise e possibilita compreender o universo humano em sua complexidade. Só posso falar da subjetividade de Lula porque sou historiadora, não a psicanalista do presidente. Se o fosse, estaria fazendo diagnóstico. Longe disso; meu objetivo é levantar hipóteses para a compreensão desse personagem. Lula é hoje presidente da República por muitos motivos, alguns de ordem subjetiva. Para entender sua personalidade, é preciso conhecer sua história pessoal. Por isso, quis entender o sistema familiar no qual ele nasceu, que papel ele ocupava. Dona Lindu teve oito filhos, e o Lula era o caçula entre os homens, o que lhe garantiu um espaço privilegiado. A ele era dedicada toda a esperança da ascensão social da família. Ele era o único que poderia estudar. Os outros teriam que trabalhar para poder sustentar a família. Assim como no início da vida ele tinha o dever de guindar a família a uma situação socioeconômica superior, Lula vai tentar fazer isso mais tarde, quando ingressa no Sindicato dos Metalúrgicos, e depois, quando entra na política, criando o PT. Acredito que, simbolicamente para ele, o grupo de pessoas que ele representou ao longo de sua vida é de algum modo a extensão de sua família.

IstoÉ – Quando você começou a estudar o fenômeno Lula?
Denise – Em 1992 resolvi fazer a minha tese de doutorado sobre o Lula. Disse a ele que gostaria de saber de que barro ele era formado. Ele topou dar entrevistas e possibilitou o meu acesso a seus familiares. Não havia nenhuma análise que buscasse entender seu personagem, embora compreender Lula seja fundamental para compreender a história do Brasil contemporâneo. Fui assessora na campanha de 1989 e trabalhei com Lula no governo paralelo a partir de 1990. Eu ficava impressionada com sua inteligência incomum, associada a uma potente intuição. Ele tem uma forma única de raciocinar, de ir além, alcançar o que poucos alcançam. É um autodidata único.

IstoÉ – Até hoje Lula se emociona muito quando fala de seu passado, não?
Denise – Nas entrevistas Lula e irmãos abriram o coração. Foram momentos muito emocionados, todos choraram. Ele também chorou em todas as entrevistas, principalmente quando lembrava da mãe, dona Lindu. Ela era uma mulher forte, maravilhosa. A história da família Silva é a repetição da história de milhões de brasileiros. Lula perdeu a primeira mulher, Maria de Lourdes, e o filho, por falta de atendimento de saúde pública adequado. Seu irmão mais velho, chamado de Zé Cuia, morreu de doença de Chagas. Lula perdeu o dedo numa prensa, e todos os seus irmãos sofreram acidentes de trabalho. Sua alimentação foi deficitária, a vida que levou no Nordeste foi duríssima. Quando a família chegou a São Paulo, teve de viver em lugares insalubres, sem água, sem luz, penou com enchentes que inundavam a casa. Dona Lindu foi abandonada pelo marido, como milhões de outras mulheres. A segunda mulher de Lula, Marisa, teve o marido e o sogro assassinados, um retrato da violência urbana. Mas esse Brasil que limitou tanto a família do Lula possibilitou que ele se tornasse o único presidente na história do País a alterar a composição do poder.

IstoÉ – Que reflexos a história de miséria teve na trajetória política de Lula?
Denise – Todas as coisas na vida têm duplo sentido. A miséria poderia significar fraqueza, mas significou força. Lula sempre lembra que não morreu aos três anos de idade, como muitos nordestinos. Já passou pelo pior vestibular de sua vida. Foi um vencedor. Depois disso, tudo o que vier ele supera.

IstoÉ – Qual a influência de dona Lindu na vida de Lula?

Denise – A mãe é a figura mítica da heroína que deu a vida em função de seu grupo, ou seja, seus filhos. Era uma mulher extremamente corajosa e amorosa. Essa mistura de coragem e amor vai pautar a vida de Lula. Quando ele fazia as greves indignado, raivoso, ameaçando o governo, ao mesmo tempo demonstrava amor aos seus representados, ao que acreditava justo. A mensagem que dona Lindu deixou aos filhos é a de que devemos lutar de peito aberto por nossos ideais. Era uma mulher muito simples, mas uma guerreira. Chegou do Nordeste com oito filhos, foi morar com o marido que já tinha ido para São Paulo com outra mulher e se divide entre as duas. Mas quando esse marido se mostra um déspota, injusto, que maltrata os filhos, ela sai de casa. Uma mulher que não sabia fazer o desenho das letras, que não estava adaptada ao Sudeste industrializado e não tinha idéia de como iria sobreviver com os filhos, tem a coragem de abandonar o marido. Ela arrisca tudo o que tem por seus ideais. É o que Lula muitas vezes faz. Ela vai com os filhos para um casebre que acaba despencando. Para sobreviver, lava roupa para fora e cata grãos de café do chão, que caíam dos sacos carregados pelos estivadores. Era a pior das tarefas. Tinha que ficar agachada no chão catando o café. O Lula fala uma frase fantástica quando conta essa história: a separação de minha mãe foi um grito de liberdade que atingiu em cheio toda a população dela. Podemos dizer de uma forma figurada que Lula continua dando esses gritos de liberdade pelo resto da vida dele, atingindo em cheio “toda a sua população”.

IstoÉ – O que ele puxou da mãe?
Denise
– A coragem, a indignação contra as injustiças, o otimismo, e a capacidade de agregar, de conciliar opostos, de aproximar as pessoas. Dona Lindu era adorada, cheia de amigos. Lula é assim. Um exemplo dessa característica: no Sindicato dos Metalúrgicos havia dois grupos que se digladiavam historicamente. Mas, de forma surpreendente, ambos queriam que Lula fosse seu candidato à presidência da instituição. Ele acabou disputando a presidência, em 1975, pela chapa da situação e elegeu-se com 98% dos votos.

IstoÉ – E o que ele puxou do pai, Aristides?
Denise – A capacidade de impor sua vontade e de ter o trabalho como valor essencial. Mas Lula tem o pai, essencialmente, como um modelo a ser negado. Aristides fazia o possível para “excluir” seus filhos do mundo, os impedia de estudar, namorar, ter prazeres simples como o de chupar um sorvete. Lula deseja “incluir” as pessoas no mundo, minimizando a exclusão social, por exemplo.

IstoÉ – Como o despotismo do pai influenciou a vida de Lula?
Denise – Há uma passagem muito importante nas entrevistas de Lula, quando ele conta como soube da eclosão da primeira greve durante o regime militar. Lula associa a morte do pai – que representava a lei injusta – à “morte” da também injusta lei anti-greve da ditadura. A imagem despótica do pai, como agente das injustiças, da violência contra os mais fracos, da exclusão, foi sempre fundamental para Lula. Identificado com sua mãe, Lula luta por justiça e igualdade, mesmo que isso se dê hoje em esferas muito maiores.

IstoÉ – Você entrevistou os irmãos de Lula. Como é a família Silva?
Denise – São pessoas muito fortes, criadas no sertão árido. Pelos frutos da árvore a gente conhece a dona Lindu, que morreu em 1980. São de uma retidão de caráter impressionante. Como pessoas absolutamente simples, não se aproveitam do fato de serem parentes de Lula. Acho que eles têm muito mais ônus do que bônus pelo parentesco. As pessoas os assediam muito, querendo coisas. Os filhos de Lula também não se imaginam melhores do que ninguém. Durante a campanha, você via os filhos ajudando, carregando caixas com camisetas nas costas. Marisa é uma mulher simples. Por exemplo, um dia, ela teve uma hemorragia, foi para um hospital e ficou na fila esperando. Não usou o fato de ser mulher de Lula para ser atendida antes dos outros.

IstoÉ – Na campanha ele foi o Lulinha Paz e Amor, mas antes ele tinha imagem de radical. Como surgiu isso?
Denise – Lula defendia com muita veemência os interesses dos trabalhadores. Era um radical no sentido mais profundo da palavra, que significa ir à raiz das coisas. Mas ele nunca foi sectário.

IstoÉ – Nem no início de sua carreira política?

Denise – Não. Por isso, ele se recusou a entrar em organizações de esquerda antes de fundar o PT. O irmão, Frei Chico, que era militante clandestino do PCB, e teve muita influência sobre Lula, levando-o para o sindicalismo, não conseguiu convencê-lo a entrar no partidão. Lula não aceitava atuar na política clandestinamente. Gosta de luz acesa, janela aberta, com o sol entrando. Foi o caráter da transparência que fez com que ele não se vinculasse a grupos de esquerda.

IstoÉ – O presidente vai ter de encarar um enorme desafio, com pouco dinheiro, muitos problemas para resolver, e uma expectativa imensa pesando sobre seus ombros. Pela sua trajetória pode-se supor que Lula terá condições de descascar esse abacaxi?
Denise – O desafio é gigantesco, as expectativas sobre os ombros de Lula são imensas. Sabemos que Lula é um grande agregador, um estadista capaz de costurar alianças difíceis entre forças políticas antagônicas. Uma de suas maiores capacidades é administrar conflitos. A vida toda Lula transformou limão em limonada, fragilidade em força. Um exemplo disso foi quando deram a Lula uma das diretorias menos prestigiadas do sindicato, que era a de assistência social. Ele dava uma atenção especial a cada operário. Transformava aquele contato em uma relação agradável. Foi se fortalecendo cada vez mais e foi eleito presidente da entidade.

IstoÉ – Lula sempre teve muito contato com o povo e depois de sua eleição isso se intensificou. Ele corre o risco de se transformar em um presidente paternalista ou cair no populismo?
Denise – Muitas pessoas querem colocar Lula nesse lugar. Mas ele faz todo o esforço possível para não ficar no lugar de messias. A trajetória dele mostra isso. Um exemplo: no jornal do Sindicato dos Metalúrgicos havia sempre uma foto enorme do presidente da entidade, que era o Paulo Vidal. Quando Lula assumiu, a primeira coisa que fez foi tirar essa foto. Ele odeia o culto à personalidade.

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* Publicado na revista IstoÉ nº1736