Um filme, um livro, na justa pausa, por Milton Temer
Análise do documentário Raízes do Brasil e do livro Venezuela que se inventa, A: Poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez, de Gilberto Maringoni, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004
Por Milton Temer*
Pausa nos comentários sobre as razões da guinada doutrinária que o Planalto impôs ao Partido dos Trabalhadores. Declaração sobre declaração, iniciativa sobre iniciativa, já não há mais novidade na crescente confluência entre o governo Lula e os partidos e segmentos sociais, outrora duros adversários, e hoje transformados em trincheiras de conforto e apoio quase incondicional.
Xingamentos à parte, nada a acrescentar, também, quanto ao absoluto predomínio do interesse dos banqueiros nas decisões do Ministério da Fazenda e do Banco Central. Já se tornou reversibilidade tediosa.
Vamos, portanto, cuidar de temas mais importantes.
Mais precisamente, um filme e um livro lançados recentemente.
Começo pelo filme, Raízes do Brasil, um documentário de Nelson Pereira dos Santos. Para um conhecedor da obra que lhe dá título, e da sua importância basilar no entendimento da formação histórica brasileira, é saborosa a seqüência de entrevistas em que filhos e netos desenham o perfil humano de Sérgio Buarque de Holanda, o autor. O patriarca, o boêmio e o cientista social.
Especialmente o de Cristina Buarque, inteiramente à vontade entre seus parceiros das rodas de samba da maior nobreza, mostrando o interesse do pai pela música popular brasileira.
É também emocionante ouvir os antológicos depoimentos de dois amigos muito próximos e especiais, Antonio Cândido e Paulo Vanzolini que, entre revelações de intimidade, destacam o papel essencial da matriarca Maria Amélia na produção intelectual do mestre. ‘Sem ela não haveria Sérgio’, afirma Cândido.
Mas, e para quem não conhece a obra? Havia um atalho indispensável que não foi percorrido. Independentemente do que os netos Zeca e Silvia conseguem passar na emoção de leitura, faltou detalhar o processo de criação de Raízes do Brasil. Definir suas dimensões gigantescas e abrir o caminho para quem não teve o privilégio de conhecer a obra antes de ver o filme.
Há ainda uma outra lacuna. Independentemente do respeito à isonomia familiar, a que Nelson se apega, há outro gênio da raça na linhagem de Sérgio e Maria Amélia, que não pode atravessar um curto espaço da fita apenas como testemunha. É Chico Buarque, do Brasil, como bem o alcunhou o xará parlamentar. Afinal, para o senso comum, Chico é o filho de Sérgio, ou Sérgio é o pai de Chico? Ambos, pela erudição, são insuperáveis na arte de produzir formulações singelas absolutamente brilhantes. Quem, na leitura de um ou do outro, não vive a situação de se perguntar ‘como pode ser tão simples e tão genial?’. Esse elo não aparece no filme.
As Raízes de Sérgio não têm nada a ver com a árvore frondosa da criação de Chico?
Mas, chega. Antes que a sensação se transforme em incompetente crítica cinematográfica, passemos ao outro ponto da pausa.
É A Venezuela que se inventa, livro de Gilberto Maringoni, com selo da qualidade editorial da Fundação Perseu Abramo. Texto fundamental, não só para quem se interessa pelas razões de permanente conturbação do governo Chávez, mas principalmente para quem escreve sobre elas. Porque é impressionante o que se incorpora da idéia de que o governo Chávez é um governo autoritário como pretendem fazer crer grande parte das grandes agências internacionais.
O livro, que não se pretende isento, mas que não é parcial, mostra terem poucos países da América Latina vivido momentos de tanta liberdade institucional e de liberdade de expressão e opinião. Na ausência dos partidos políticos desmoralizados pela seqüência de estelionatos eleitorais – tanto a democracia cristã quanto a social-democracia, que fez caminho muito parecido ao que vem sendo percorrido pelo PT -, são os canais de televisão que organizam, não raro, de forma até insultuosa e racista, as mobilizações da classe média contra Chávez. Como o JB mostrou, em página inteira, do mingo (21/3).
Trata-se de um processo revolucionário, comparável ao que pretendeu a Unidade Popular do Chile, durante o governo de Salvador Allende? Certamente que não. O porquê está explicado no livro de Maringoni. Que, pela pesquisa jornalística, nos leva ao conjunto de informações históricas fundamentais para compreender por que Chávez resiste à conspiração permanente, financiada acintosamente pelo governo Bush. E a discutir suas perspectivas. Para aprovar ou discordar do que aqui foi dito, vale a pena ir ao livro e ao filme.
* Milton Temer é jornalista.
Artigo publicado no Jornal do Brasil, 24 de março de 2004