Homenagem de Pedro Tierra à Lélia Abramo.

Penso em Lélia Abramo como personagem. Personagem do século XX. Trouxe consigo as marcas desse século de agonia e paixão: mulher, militante dos movimentos sociais, nas ruas e no palco, herdeira da tradição libertária dos anarquistas e socialistas, além de trazer no sobrenome – Abramo -, quem sabe o selo de uma longínqua da ascendência judaica, o que terá provocado não poucas angústias durante o período da segunda grande Guerra, quando viveu na Itália, sob o regime fascista de Mussolini.

Talvez pensá-la como personagem produza um certo distanciamento. Aquele entre a nossa paixão de espectadores e o universo simbólico que encarna uma atriz como Lélia, quando sobe ao palco de “Eles não usam black-tie”, ou no momento em que assina a ata de fundação do Partido dos Trabalhadores, no 11 de fevereiro de 1980. Em ambos os momentos exprime a verdade profunda que atravessa sua vida: a vida de atriz. Ser e representar como um ato único e indivisível num mundo tragado pela contradição. Entender e assumir essa dilaceração como face essencial do teatro no mundo contemporâneo e, em particular, em um país submetido por décadas à tirania dos generais.

Não estamos, apenas, diante de uma militante que, para cumprir suas tarefas políticas de organizar e mobilizar sua categoria para o combate à censura e ao terror cultural, durante a ditadura, se faz, às vezes, de atriz. Estamos diante de uma atriz, das maiores, porque vive o que representa e representa o que vive e por isso falará de maneira permanente para a história do seu povo. Era, afinal, o que desejava. E cumpriu.

Recorro à Poesia, expressão que Lélia Abramo amava tanto, para nutrir sua memória:

“Ensinou-me o fogo
e a palavra.
Lavrou-me nos pés o roteiro
dos caminhos que percorrerei:
nenhuma dor visite a casa do meu irmão
sem se fazer lágrima nos meus olhos.
Nenhuma investida dos cavaleiros da morte
será silenciada.
E se vier a tortura ou a morte,
a marcha para o sol reunirá
os pedaços dispersos do meu corpo…
E o canto do povo sobre a cidade aberta
não me surpreenderá adormecida.”


*Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é presidente da Fundação Perseu Abramo.

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