(…) Milton Santos avançou crescentemente na discussão da relação entre ciência e política, não de uma forma panfletária e partidária(…)

Para Maria de Azevedo Brandão, organizadora do livro “Milton Santos e o Brasil”, muito mais do que interpretar o país e seu próprio tempo, Milton deixou uma lição fundamental: a de que a produção intelectual não se pode resignar à crítica apenas, mas há de subordinar-se à busca de sistemas de análise e interpretação

O que mais contribuiu para a formação humanística de Milton Santos?

Em primeiro lugar, o período em que ele formou sua personalidade, um momento de grandes expectativas sobre o Brasil e de um forte sentimento de solidariedade, de querer contribuir para um país melhor.

Em segundo, a família e a escola. Pais professores da rede pública, cultos, bem relacionados, com um projeto de tornar seus filhos o que, na Bahia de sua época, se chamava de “homens públicos”, pessoas dedicadas a contribuir para o bem comum, a defesa dos valores sociais de justiça, coerência, honestidade, e certamente a sensibilidade de quem vinha de uma origem humilde e conhecia as dificuldades da pobreza. A isso somou-se a experiência de um curso secundário com professores que lhe abriram o caminho para a crítica e a vontade de participação em um projeto de transformação social.

Em terceiro, a vivência, a partir do doutorado na França, do contraste entre países e regiões do mundo, num período de intensa discussão sobre as heranças coloniais, o imperialismo e os conflitos pelas novas formas de dominação entre os atores hegemônicos em nível planetário. E, naturalmente, o exílio, que tempera a capacidade de sentir o outro.

A obra de Milton Santos extrapola a geografia e o território brasileiro. A que se deve o reconhecimento nacional e internacional obtido por ele?

Milton Santos penetrou certas esferas privilegiadas do mundo acadêmico por meio de trabalhos sobre questões de desigualdades internacionais, mas também intra-nacionais, como a pobreza e a discriminação social, étnica e política que também afetam os próprios paises hegemônicos.

Se a entrada no cenário intelectual europeu e americano foi de certo modo inicialmente dificultada pelo fato de partir de uma ciência então pouco prestigiada, de outro lado ela foi facilitada pela crise sofrida pela própria geografia, que Milton enfrentou com enorme veemência, participando, com um estilo cada vez mais pessoal, da discussão do seu objeto e de suas interfaces com outras ciências sociais.

Mais do que isso, Milton avançou crescentemente na discussão da relação entre ciência e política, não de uma forma panfletária e partidária, mas insistindo na importância da análise e da vigilância quanto à ideologia na aproximação com o real. Defendeu uma atividade crítica responsável, isto é, fundada na análise e uma ação política igualmente firmada sobre o conhecimento empírico teoricamente elaborado.

Qual a importância da obra de Milton Santos para a geografia e para o país?

Para mim essa importância está no seu testemunho de como ser um intelectual. Em termos estratégicos, muito mais do que interpretar o país e seu próprio tempo, Milton deixou uma lição fundamental: a de que a produção intelectual não se pode resignar à crítica apenas, mas há de subordinar-se à busca de sistemas de análise e interpretação. Poucos autores brasileiros foram tão obstinados em cumprir um projeto de vida. Milton foi um intelectual por projeto, construindo uma obra sistematicamente planejada, não com rigidez, mas com determinação e expressa em uma linguagem cada vez literariamente mais cuidada.

No particular do Brasil, o seu apelo por “fazer falar o território” sintetiza o empenho em conhecer analiticamente o país, em suas peculiaridades e sob as circunstâncias transnacionais que o cercam, para mudá-lo, com a cabeça e o coração.

Mais informações sobre o livro “Milton Santos e o Brasil”

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