Entrevista com Leonilde Servolo de Medeiros, autora do livro “Reforma Agrária no Brasil”
Autora do livro “Reforma Agrária no Brasil” conta um pouco como essa luta começou a aponta alguns rumos dessa política no atual governo.
Como o surgimento das Ligas Camponeses e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em momentos diferentes, deram novo significado à luta pela terra no Brasil?
São dois momentos distintos, mas com alguns traços em comum. Ressaltaria três deles. Em primeiro lugar, a dificuldade de acesso à terra pelos trabalhadores que a querem para trabalhar, dados os altos índices de concentração fundiária. Em segundo, são situações em que as lutas dos trabalhadores colocam a questão da terra na ordem do dia e provocam polarizações e ações políticas em direção a ela. Finalmente, um terceiro ponto comum é a rápida articulação dos interesses ligados à propriedade da terra quando as demandas dos trabalhadores vêm à tona.
No momento das Ligas, o debate sobre a reforma agrária era parte constituinte de uma ampla discussão sobre as perspectivas de transformação econômica, social e política do país. Por alguns, ela era entendida como ferramenta central para vencer o chamado “atraso” da agricultura e um instrumento de desenvolvimento econômico. Para o Partido Comunista, era um componente da etapa “democrático burguesa” da “revolução brasileira”. Para a direção das Ligas, era um primeiro passo em direção ao socialismo. Para os trabalhadores que se envolviam nas lutas, a palavra sintetizava o sonho do acesso à terra, sem a exploração dos “patrões” (no caso dos foreiros, moradores de engenho etc) ou pressão dos “grileiros” e suas milícias privadas, nos casos das áreas de expansão da fronteira. Em qualquer de suas versões, a perspectiva de alterações na estrutura fundiária provocou uma rápida organização dos interesses ligados à propriedade da terra. Foram eles uma das importantes bases de sustentação do golpe militar.
O momento do MST é outro: o de uma agricultura modernizada tecnologicamente, que intensificou o processo de expropriação já em curso. Quando, no início dos anos 80, a demanda por terra ganhou os espaços públicos, a questão que se colocava no debate era outra: qual o sentido de uma reforma agrária se a agricultura está cumprindo seu papel no desenvolvimento? No entanto, a demanda não só existia como conseguiu mobilizar, de forma inédita, trabalhadores de norte a sul do país. Num primeiro momento, a base social do MST era principalmente pequenos agricultores que se pauperizaram justamente ao longo desse processo de modernização e que se viram impossibilitados de se reproduzir socialmente como produtores autônomos, em virtude do alto preço da terra, endividamento etc. Num momento posterior, e expandindo-se pelo Brasil todo, o MST passou a mobilizar assalariados rurais e mesmo populações das periferias urbanas que passam a ver no acesso à terra uma alternativa à falta de emprego, à insegurança. O sindicalismo rural também passou a se envolver em acampamentos e ocupações de terra, ampliando a mobilização.
Também aí se verifica a forte reação dos interesses ligados à propiedade fundiária, que se fazem ver não só mediante a criação de entidades como a UDR, como também pela eficiente ação parlamentar, através da chamada “bancada ruralista”.
Ao longo dos últimos 20 anos, a reforma agrária passa a recobrir um conjunto de novos temas como preservação ambiental, segurança alimentar, acesso dos trabalhadores a um conjunto de bens, maior possibilidade de participação política, implicando na ampliação de seus significados, inclusive trazendo elementos para se pensar em revisão do que se tem tradicionalmente classificado como “rural” e “urbano”. Com isso, essa bandeira se atualiza e traz para debate a necessidade de se discutir que a modernização do campo pode ter outros caminhos e não se restringir somente à produção altamente tecnificada que, na história brasileira, veio acompanhada da degradação ambiental, da precarização do trabalho e do desrespeito aos direitos trabalhistas, da exclusão, com todas suas consequências sociais e políticas.
No livro, você descreve as mudanças ocorridas em decorrência das pressões dos movimentos pela luta no campo até a década de 90. Já é possível visualizar para onde aponta esta relação no atual governo?
Em 2003, embora tenham ocorrido acampamentos e tenha aumentado o número de acampados, tanto MST como Contag parecem ter optado por dar um voto de confiança ao novo governo. No entanto, ao longo desse ano foram poucos os assentamentos realizados. Um Plano Nacional de Reforma Agrária só começou a ser elaborado no segundo semestre, mostrando claramente que a prioridade governamental estava na política econômica. Já entrando no segundo ano de governo, continua a tensão entre as metas do Plano e a possibilidade da obtenção de recursos para levá-las adiante. Fica ainda uma interrogação sobre a possibilidade efetiva do governo em promover as mudanças jurídico institucionais previstas no Plano para agilizar o processo de reforma agrária, uma vez que possivelmente elas provocarão com forte oposição. Um teste importante para isso será, por exemplo, o percurso parlamentar da proposta de expropriação das terras onde forem constatadas situações de “trabalho escravo”.
Os movimentos de luta pela terra aparentemente enfrentam certa dificuldade política em lidar com a novidade que é o PT no governo federal, mesmo com resultados pouco significativos, até o momento, em termos de famílias assentadas, embora haja avanços e novidades interessantes no que se refere ao apoio à agricultura familiar, que é uma outra face importante da questão.
Parece claro que, mesmo num governo que tem a reforma agrária inserida em seu programa, se não houver algum tipo de mobilização e pressão, o ritmo de assentamentos não corresponderá nem mesmo às modestas metas do Plano Nacional de Reforma Agrária.
O Plano Nacional de Reforma Agrária: Paz, produção e qualidade de vida no meio rural, lançado em novembro de 2003 pelo atual goveno representa uma inovação na forma de ver e tratar a questão?
Há algumas inovações importantes, entre elas a ênfase dada a um novo modelo de assentamento, baseado na concentração espacial, na adequação dessas unidades aos diferentes características regionais, na premissa do desenvolvimento territorial, na preocupação com a qualidade dos assentamentos e não só com metas quantitativas etc. No Plano retoma-se uma antiga tese, nunca implementada, da constituição de áreas reformadas. Isso seria uma condição básica para potencializar investimentos de infraestrutura e investimentos produtivos. A constituição dessas áreas exige a convergência de diversos instrumentos para obtenção de terras. Pode-se afirmar que elas são uma condição importante para que seja efetivamente levada qualidade aos assentamentos e que eles não sejam vistos apenas como espaço de produção, mas também como espaço de vida social, participação política etc.
Por outro lado, as metas são modestas e temos um enorme ponto de interrogação em torno da garantia de recursos necessários. Resta ver até onde será possível mudar o marco jurídico institucional, de forma a permitir a agilização desse processo.
Na sua opinião, quais os caminhos a serem traçados para que as desigualdades sociais no campo sejam, senão extintas, pelo menos dinimizadas?
As pesquisas disponíveis têm mostrado que, apesar de toda precariedade dos assentamentos atualmente existentes, a vida dos assentados apresentou melhorias em relação ao momento anterior ao acesso à terra. Essa melhoria pode ser observada tanto em termos de renda gerada no assentamento, como no fato de terem acesso a moradia, terem um mínimo da alimentação garantida pela produção do assentamento, terem acesso a bens de consumo etc. Ao mesmo tempo, a luta por reforma agrária, os acampamentos, as ocupações, a necessidade de um mínimo de organização nos assentamentos oxigenaram a vida social e política no campo. Não quero com isso afirmar que tenha havido uma ruptura nos mecanismos tradicionais de dominação, nos arranjos clientelistas, mas apenas pontuar que a luta por terra foi um dos canais que permitiu que muitos trabalhadores do campo tivessem outras formas de contato com as instâncias estatais, percebessem a importância de organização, de reinvindicação, da pressão
Isso mostra que um processo de reforma agrária é uma condição importante para a redução das desigualdades sociais na sociedade brasileira.
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