Diretas e democracia corintiana, por Sócrates*
Depois de ter nascido (1954) em um país prestes a se aproximar do futuro, de ver e acompanhar a tristeza de meu pai ao se desfazer -por causa do golpe militar (1964) e de sua previsível repressão- de muitos dos livros que o educaram e o ensinaram a conquistar o seu espaço em uma sociedade já bastante competitiva, de iniciar a minha vida profissional dentro do esporte (1974) ainda sem muita noção do que iria encontrar e dos obstáculos que teria que transpor, cheguei ao auge de minha carreira (1984) vestindo orgulhosamente as cores do Corinthians e participando de dois movimentos sociais fundamentais para a minha realização e satisfação pessoal e para o encaminhamento político da nossa nação. A democracia corintiana foi um desses momentos mágicos que não vivemos duas vezes. A maioria de nós sequer passa perto de algo tão profundo, pleno, saboroso e participativo como aquele movimento.
Em pleno período de exceção, mesmo que muitos dos pontos fundamentais para a redemocratização do país -como a anistia política, ainda que parcial- já tivessem sido conquistados, criar condições para discutir por meio de um canal tão popular como o futebol as questões que interessavam diretamente a sociedade civil, ampliar o leque dos que passaram a ter voz e a entender o que realmente se buscava e pelo que se lutava, oferecer um exemplo concreto de como uma sociedade poderia se estabelecer respeitando a opinião de todos os seus integrantes e potencializando a opção da maioria, e utilizar toda a exposição inerente à prática desse esporte no país para popularizar os meios e os símbolos que representavam nossas posições -como a cor amarela que unificou o discurso das Diretas-Já- é muita coisa em um país que oferece educação a tão poucos.
O movimento das diretas encorpou-se e cresceu nos dois anos em que fomos, no Corinthians, questionados e desvalorizados sob o ponto de vista de todo tipo de posições conservadoras, que àquela época possuíam um excepcional caldo de cultura. E, como nos tornamos foco de referência sobre o discurso da democratização, já que vestíamos o roupão democrático dentro dos muros do Parque São Jorge, atraímos para nosso lado os que acreditavam em uma nova ordem, um novo caminho baseado nos direitos individuais e na plena liberdade de pensamento e expressão. Tendo também o futebol como cenário (algo impensável até então), montamos com todas as correntes, organizações e associações as bases para a nova sociedade que viria a seguir.
Quando me recordo daquela imensa concentração na praça da Sé, no último comício em 1984, para posterior caminhada até o Anhangabaú, tendo que me espremer naquela multidão para poder chegar ao caminhão onde Osmar Santos comandava o show de cidadania, ainda fico emocionado. Foi ali que me defrontei definitivamente com a minha verdade, a minha história; pude externar os sentimentos que me abraçavam e sonhar com um mundo novo. Ao afirmar que não sairia do meu país por nada se a emenda das diretas passasse no Congresso, estava apenas respeitando tudo o que sentia. Pena que os reclamos de milhões de cidadãos brasileiros fizeram pouco eco entre os parlamentares naquele instante -e por esse motivo escolhi um tipo de exílio que, ainda que triste, muito me ensinou. Acompanhei à distância a vitória de Tancredo Neves, a doença, a cirurgia, a lenta agonia e a sua morte. Não podia acreditar que em apenas um ano tivéssemos passado por tudo aquilo.
E eu longe. Voltando ao Brasil, deparo-me com os preparativos para a Constituinte que viria a seguir. Com um grupo de amigos -poetas, cineastas, atores, músicos, todos entusiastas e apaixonados pelo próprio país- resolvemos municiar os debates com algumas reflexões e propostas. Acompanhamos atentamente o resultado final do texto da nova Constituição, que representou, mesmo com algumas imperfeições, um verdadeiro avanço. Vivemos a primeira (para mim e para muitos) eleição direta para presidente com um gosto de manipulação por parte de alguns meios de comunicação, sofremos com a abertura dos nossos mercados de forma drástica e descuidada e depois caímos nas armadilhas do neoliberalismo, de onde ainda não conseguimos escapar. Tantas transformações, que culminaram com a eleição de Lula, só poderiam ter ocorrido em um país tão dinâmico e jovem. E é essa juventude (2004) que nos faz acreditar em um futuro melhor e mais justo. Livres, felizmente, nós já somos.
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, 49, médico, é ex-jogador de futebol e comentarista esportivo. Foi um dos líderes da “democracia corintiana”, movimento que buscava flexibilizar as normas rígidas de disciplina e hierarquia a que os jogadores estavam submetidos.
Visite a página especial sobre os 20 anos das Diretas
* Publicado na Folha de S.Paulo de 02/02/2004