Professora da USP e estudiosa da vida de Jack London, Maria Silvia Betti fala da vida do jornalista e comenta sobre o livro escrito em 1902 e lançado pela Editora Perseu Abramo.

Entrevista com Maria Sílvia Betti

  O livro “O Povo do Abismo”, de Jack London, é um dos lançamentos mais recentes da Editora Fundação Perseu. Para escrever este livro, Jack London exerce o que hoje chamamos de jornalismo participativo, ou seja, passa a viver com moradores de rua de Londres, isso em 1902, e denuncia toda a injustiça social e a miséria no centro do império mais poderoso da época. O mais impressionante neste trabalho, que teve um grande sucesso de vendas, é como o autor consegue prender a atenção do leitor, seja pela sua capacidade de entretê-los, seja pela riqueza de informações – geográficas, políticas e sociais – que ele consegue transmitir.

Maria Sílvia Betti, professora de literatura norte-americana da USP e estudiosa da obra de Jack London, faz uma apresentação de 40 páginas no início do livro e descreve as principais características do autor, sua trajetória como escritor e jornalista, sua trajetória de vida, seu envolvimento com a política, entre outras questões.

Nesta entrevista exclusiva ao site da Fundação Perseu Abramo, ela comenta algumas dessas questões.

1 – Por que as obras de Jack London fizeram e fazem tanto sucesso, a ponto de torná-lo um dos escritores mais lidos do mundo?

Jack London tem uma característica fundamental que é a de tratar de temas e questões que conheceu na prática, em sua intensa e diversificada experiência de trabalhador, militante, viajante e repórter. As narrativas de viagens e de aventuras sempre foram um campo de enorme interesse dentro da indústria cultural, pelo fato de combinar o prazer literário da ficção ao gosto pela extensão de conhecimentos, ou seja, pela informação sobre outras realidades geográficas, sociais e culturais. Jack London lida de forma extremamente eficaz com esses dois aspectos, o que amplia consideravelmente a faixa de leitores atingida por seus trabalhos. A habilidade na composição dos enredos enriquece-se com o conhecimento direto das regiões, tipos humanos, atividades de subsistência e costumes abordados. Essa combinação lhe dá uma gama extraordinariamente ampla de possibilidades de criação. Tendo vivido numa época de intensas e rápidas transformações no mundo do trabalho e das relações políticas, Jack London acabou constituindo uma obra de caráter singular, uma vez que, a todas essas características, acresce-se o fato de ele escrever e pensar, durante a maior parte de sua trajetória, sob o prisma do socialismo e sob a ótica do trabalhador, do proletário, do miserável, do excluído. Pode-se dizer que, ao longo de seus trabalhos, fazem-se presentes praticamente todas as principais questões sociais e econômicas de sua época: a expansão imperialista nos diferentes continentes, a exploração do trabalho, as desigualdades sociais e econômicas e a concentração da riqueza. Esse conjunto de características dá a suas obras um interesse que se apresenta não apenas no campo do entretenimento e da indústria da cultura (que se encontrava em enorme processo de expansão nos Estados Unidos em sua época), mas também no campo da literatura, e da ciência política, dada a dimensão política de seu trabalho. Esse é um conjunto extremamente significativo de características, que dá ao seu trabalho um interesse especial sob vários ângulos e, portanto, para um público de leitores extraordinariamente amplo.

2 – Na obra do autor, que papel teve “O Povo do Abismo”, e por que esta obra dialoga com os tempos atuais?

“O Povo do Abismo”, escrito e publicado em 1903, é um dos trabalhos mais representativos, precisamente, da expressão política do pensamento de Jack London. Segundo suas próprias palavras, nenhum dos livros, que havia escrito até então, o havia tocado tanto. Desenvolvido sob a forma de reportagem e como resultado da participação direta nas circunstâncias descritas, “O Povo do Abismo” é uma indicação inequívoca do engajamento de Jack London na causa socialista nesse momento e um documento de incrível contundência, registrando in loco o mundo da exclusão e da miséria em plena capital da grande potência imperialista e econômica da época. Exercendo uma intensa atividade de militância partidária, Jack escreveu o livro por sua própria iniciativa: ele havia sido convidado a cobrir, como repórter, a Guerra dos Bôeres, no Sul da África, e ao desembarcar em Londres, onde deveria tomar o navio para a África do Sul, recebeu um telegrama cancelando o compromisso. Ao invés de voltar aos Estados Unidos, ele resolveu aproveitar a oportunidade histórica que se apresentava, com a aproximação das festividades de coroação do rei Eduardo II, para registrá-la sob a ótica das populações miseráveis do East End londrino, fazendo-se passar por um marinheiro americano desempregado e indo temporariamente conviver com a população local. Isso lhe deu a possibilidade de observar e analisar na prática o reverso da opulência e da austera solidez aparente daquela sociedade. A publicação vem aumentar ainda mais o destaque de Jack dentro do movimento socialista norte-americano. Em pouco tempo ele viria a se tornar um verdadeiro símbolo da luta socialista no país, e “O Povo do Abismo” sem dúvida alguma teve um papel importante nesse processo. Além de ter sido publicado pela Macmillan, o livro saiu, também, em forma seriada, o que indicava seu grande apelo para um público leitor que vinha crescendo cada vez mais, naquele momento, com a expansão do socialismo.

3 – Como o marxismo influenciou o autor?

O contato com os escritos de Marx difundiu-se, entre a militância socialista nos Estados Unidos, com a chegada dos imigrantes alemães, entre as décadas de 40 e 50 do século XIX. Marx escreveu, inúmeras vezes, para o jornal New York Tribune, e em 1857 foi fundado em New York o Communist Club. Esses fatos sem dúvida contribuem para a difusão do marxismo nos Estados Unidos. Jack London, no entanto, tornou-se socialista, antes de mais nada, por sua vivência da condição proletária, e teve seus primeiros contatos com o marxismo através de uma cópia do Manifesto Comunista lida aproximadamente aos dezenove anos de idade, num período em que sobrevivia e sustentava a família em meio a grandes instabilidades econômicas e privações de toda ordem. O contato com o marxismo foi decisivo, para ele, no sentido de lhe trazer fundamentos teóricos para lidar com convicções que viriam a ser fundamentais em seu trabalho – e das quais, mesmo intuitivamente, ele sempre havia estado empiricamente próximo – a crença na importância da luta de classes, a idéia de que a propriedade privada dos meios de produção representava uma usurpação dos direitos da maioria, e, a confiança na vitória do socialismo.

4 – De que forma o engajamento político de Jack London norteou e/ou influenciou seus trabalhos e sua vida?

A idéia da luta pelo socialismo sempre esteve presente no trabalho de Jack London, seja pelo exercício propriamente dito da militância, intensamente exercida em escala nacional, seja pelos temas e abordagens encontrados em trabalhos como “Class Stuggle”, “The Iron heel” e “O Povo do Abismo”. Ele atuou, paralelamente, como jornalista e articulista, e produziu um material ensaístico altamente significativo dentro do debate político de seu tempo. Trabalhos como “War of the Classes” e “Revolution” são representativos da natureza combativa, argumentativa e ao mesmo tempo participante que sempre o ligou ao socialismo sob o prisma do envolvimento direto com a militância e o debate de idéias. A denúncia da exploração do trabalho e a desigualdade econômica são assuntos recorrentes em seus escritos, assim como a escolha de ângulos de observação onde a perspectiva dos proletários e desprovidos é a adotada, como acontece em “The Apostate”, onde trata da exploração do trabalho infantil, de “The mexican”, onde expressa sua simpatia pela Revolução mexicana, e em “Something Rotten in Idaho”, onde faz importantes e corajosas denúncias, para citar apenas alguns. No que se refere ao âmbito da vida pessoal de Jack, seu talento literário associou-se à militância através de campanhas nacionais onde atuava como orador e conferencista. Rapidamente alçado à condição de celebridade literária, de fenômeno de vendagens de livros e de símbolo nacional da luta pelo socialismo, Jack tornou-se uma figura pública, e todas as suas ações e posições passaram a suscitar comentários e desdobramentos dentro do partido e do debate político da época. Se por um lado isso representou uma prova incontestável de uma enorme influência e calorosa acolhida junto aos companheiros de partido e ao público em geral, por outro, contribuiu para expô-lo a cobranças, principalmente na medida em que os crescentes compromissos editoriais passaram a ocupá-lo quase que integralmente.

5 – Que outras obras do autor merecem destaque?

Os contos e histórias de aventuras de Jack London são inconfundíveis, como estilo, e apresentam o autor no campo onde ele se movimenta com maior flexibilidade literária e capacidade criativa: “Caninos brancos”, “O chamado selvagem” e “Histórias dos Mares do Sul” são algumas referências imprescindíveis pela representatividade que têm dentro do trabalho literário de Jack. No campo das idéias e da militância socialista, “Tacão de Ferro” e “O povo do Abismo” são os dois trabalhos mais expressivos do pensamento do autor.

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