Jornalista da Folha de S.Paulo comenta sobre a vida de Jack London e seu livro O Povo do Abismo, publicado pela Editora Perseu Abramo.

Livro: O Povo do Abismo Autor: Jack London, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, 336 páginas.

Denúncia de Jack London sobre moradores de rua ecoa em SP

Livro: O Povo do Abismo Autor: Jack London, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, 336 páginas.

Por Carlos Eduardo Lins e Silva*
especial para a Folha

Há um século e dois anos, o escritor americano Jack London resolveu viver por um tempo (que durou 86 dias) na parte oriental de Londres, onde moravam em cortiços ou na rua cerca de 450 mil pessoas, que ele chamou de “o povo do abismo”.

O relato pungente pela precisão de estilo jornalístico está sendo posto à disposição dos brasileiros numa edição do livro que o autor diria, no ano de sua morte, que foi aquele de que mais gostou: “Nenhum outro [livro meu] arrancou tanto do meu coração quanto aquele estudo da degradação econômica dos pobres”.

O que restaria do coração do apaixonado London se ele pudesse testemunhar mais de cem anos depois o assassinato de mendigos sem-teto nas ruas de uma grande metrópole do Novo Mundo (que ele julgava superior à Europa) em que “o povo do abismo” é muito mais numeroso e sobrevive em condições muito piores do que as “do inferno social chamado Londres” do início do século 20?

Logo no início do livro, London reproduz uma notícia de jornal sobre a morte de Elizabeth Crews, de 77 anos, moradora de um quarto de cortiço por três décadas e meia: “O doutor Chase Fennel disse que a morte se deveu a uma infecção sangüínea causada por escaras, ocasionadas por autonegligência e pelo ambiente sujo”.

A conclusão, indignada, do autor é clara: “O mais alarmante sobre esse pequeno incidente… é a complacência com que as autoridades examinaram e emitiram o julgamento. Que uma velha senhora de 77 anos de idade tenha morrido de AUTONEGLIGÊNCIA é a maneira mais otimista de encarar o fato. A culpa por ter morrido foi da velha morta e, uma vez identificada a responsabilidade, a sociedade segue satisfeita, para resolver outras questões”.

O destino da senhora Crews foi com certeza muito mais risonho do que o de “uma moradora de rua conhecida como Maria e que dormia na rua Barão de Iguape, próxima do 1º DP (Sé)”, segundo a Folha de segunda-feira passada, que morreu com golpes na cabeça de “instrumentos contundentes” muito antes de chegar aos 77 anos, idade superior à expectativa média de vida das brasileiras (estimada em 69 anos).

A descrição de London é chocante, mas não muito diversa da que qualquer repórter poderia fazer hoje sobre o que se vê debaixo de algumas pontes e viadutos da cidade de São Paulo: “… As criaturas empilhavam-se ali com seus andrajos, a maior parte do tempo dormindo ou tentando dormir. Aqui, uma dúzia de mulheres com idades que variavam de 20 a 70 anos. Ali, um bebê, talvez de uns nove meses, dormindo deitado sobre o banco duro, sem travesseiro ou coberta, sem ninguém para cuidar dele. Um pouco à frente, meia dúzia de homens, dormindo em pé ou recostados um no outro”.

Nos pontos altos de sua ficção, como num dos melhores romances da língua inglesa, “O Apelo da Selva” (The Call of the Wild), London era praticamente irretocável. Mas nos textos jornalísticos, sociológicos ou panfletários, quase sempre as contradições escandalosas de sua personalidade multifacetada vinham à tona escandalosamente.

É assim também em “O Povo do Abismo”, onde convivem a compaixão comovedora pela desgraça alheia, a revolta raivosa contra o sistema que engendra injustiças tão flagrantes, o nacionalismo americano ingênuo e arrogante e até um despudorado apoio a teses próximas da eugenia e da superioridade racial.

A vida de Jack London foi um fosso de incoerências. Seu talento com as palavras e sua genuína e extraordinariamente intensa solidariedade com os semelhantes o redimem como homem e como artista. “O Povo do Abismo”, embora não possa ser listada entre os seus grandes trabalhos, é um grito desesperado de denúncia que ecoa com particular relevância nestes dias em São Paulo.

* Carlos Eduardo Lins da Silva, jornalista, é diretor da Patri Relações Governamentais e Políticas Públicas.

Publicado no jornal Folha de S. Paulo, 28/08/2004

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