Entrevista com Gilberto Maringoni
Cartunista acaba de lançar o livro “A Venezuela que se inventa”, obra que trata do processo político na era Chávez.
Por Michelle Rusche
Eu queria que você comentasse um pouco o processo político vivido nos últimos anos pela Venezuela. Hugo Chávez pode ser definido hoje como um presidente de esquerda?
Maringoni – A Venezuela vive a etapa de uma crise que dura pelo menos duas décadas. Ela teve seu primeiro sinal em 1983, quando uma enorme crise fiscal do Estado, aliada à queda abrupta dos preços do petróleo no mercado internacional, acabou com a prosperidade do período conhecido como o da “Venezuela petrolera”. Um segundo sinal aconteceu no início de 1989, logo após a posse do presidente Carlos Andrés Pérez, através do anúncio de um acordo com o FMI. Isso se traduziu em arrocho salarial, aumento nos preços da gasolina e corte de gastos públicos. As medidas tiveram como resultado uma imensa revolta popular em várias cidades e ficou conhecida como Caracazo. A repressão foi impiedosa e gerou um número de mortos que alguns avaliam em mais de 1,5 mil. É uma longa história, que procuro contar no livro. Resumindo, pode-se dizer que estes acontecimentos aniquilaram um modelo de organização social e institucional que se acreditava modelar na América Latina. O tenente-coronel Hugo Chávez entrou em cena em 1992 como líder de uma tentativa de sublevação militar que se propunha a mudar os rumos do país. Derrotado, ele tornou-se, ao longo dos anos, uma espécie de símbolo do descontentamento popular. Chávez não provoca crise alguma; antes é conseqüência dela. A novidade de seu governo é que, ao contrário de muitos no continente, caminha do centro para a esquerda.
A transição política introduzida pelo governo de Chávez é acompanhada por forte resistência dos meios de comunicação e da elite conservadora daquele país. Por quê?
Maringoni – Chávez se propõe a fazer várias reformas sociais, como a mudança na estrutura agrária, o fortalecimento do Estado e a apropriação da riqueza petroleira como um bem público e não fonte de renda para as classes dominantes. Estas valem-se dos instrumentos que têm mais à mão para atacá-lo, que são os meios de comunicação. A campanha contra seu governo e as mudanças sociais que planeja fazer, coloca na ordem do dia, em todo o mundo, a necessidade da democratização dos meios de comunicação.
No campo da economia o governo Chávez tem assumido postura diferente dos governos neoliberais?
Maringoni – O programa de governo de Chávez nesse terreno é extremamente moderado, até mesmo por conta da difícil correlação de forças no âmbito internacional. No entanto o país não tem acordo com o FMI, suas reservas internacionais próprias equivalem às brasileiras e a dívida externa não é alta. Chávez não privatizou nada, dobrou o orçamento das áreas sociais e coloca-se abertamente contra a ALCA. Na realidade, Chávez, desde o início, tem se preocupado em ampliar sua base de sustentação política interna e externa para avançar em reformas anti-neoliberais.
Como você encara a decisão da CNE (Conselho Nacional Eleitoral) de não aceitar as assinaturas recolhidas pela oposição, solicitando um plebiscito sobre o mandato de Chávez?
Maringoni – A coleta de assinaturas, no início de dezembro, embutia, segundo constatação de diversos observadores internacionais – eu era um deles – inúmeras irregularidades, como urnas itinerantes e mecanismos de coação a funcionários de empresas privadas. O CNE realizou uma tarefa imensa, de conferência desse material. O organismo não recusou as assinaturas. Como pairam dúvidas sobre um número expressivo – cerca de 870 mil -, o Conselho quer reconfirmá-las, através de uma nova consulta no final de março.
O que falta de esclarecimento nas matérias publicadas nos jornais e revistas sobre a crise venezuelana?
Maringoni – A imprensa brasileira, com raras exceções, cobre muito mal a América Latina e o caso venezuelano é exemplo disso. Um repórter de um grande jornal paulistano, na última semana, chegou a dizer que o país está “à beira de uma guerra civil”, coisa que não vi nem mesmo a oposição afirmar. Outra jornalista opinou, num termo politicamente incorretíssimo, que “a coisa está preta na Venezuela”. Além da desinformação pura e simples, isso demonstra que nossa mídia, em sua maioria, é pautada pelas agências de informação norte-americanas e européias, extremamente tendenciosas em assuntos dessa natureza.
Podemos traçar algum paralelo entre os presidentes Hugo Chávez e Lula?
Maringoni – É arriscado fazer este tipo de comparação. São estilos, realidades e orientações políticas muito particulares em cada caso.