A vida continuada de Celso Furtado
” (…)Para Furtado, a injusta distribuição de renda é irmã siamesa da dinâmica de um sistema estruturalmente atravessado pelo desigual acesso aos bens da técnica e civilização.”
Por Juarez Guimarães*
Toda grande síntese de pensamento termina um mundo e começa outro. Este mundo brasileiro em construção que ganhou um sentido com a obra e vida de Celso Furtado está ainda nos aléns do governo mais avançado que a sociedade brasileira foi capaz de construir após estes vinte anos de regime militar. Por isso, até os últimos dias de sua longa vida ele trabalhava. Agora, é a sua obra que continua a trabalhar em nós.
O segredo último da permanência da síntese de Celso Furtado está nos termos muito amplos de sua composição. O conceito de subdesenvolvimento, de agudo senso histórico, fez o encontro da nossa formação periférica com as linhas de desenvolvimento capitalista do pós-guerra. A cultura do varguismo transformada pelos fundamentos democráticos de seu pensamento fecundou-se com as linhas mais avançadas da crítica ao liberalismo econômico do pensamento de Keynes e de Prebisch. O sentimento nacional e de inclusão social, sob o imperativo normativo da democracia, tornou-se, enfim, mais nitidamente republicano.
No pensamento de Furtado, o ideal de um Brasil justo, soberano e livre ganhou um quadro analítico, que soldava diagnóstico e solução. Na afirmação muito nítida do pensamento anti-Celso Furtado do regime militar, “é preciso fazer o bolo crescer para depois distribuir”, era outro ideal e outra a solução. Na polêmica síntese de Fernando Henrique, “O Brasil não é subdesenvolvido, é injusto”, o ideal parece ser o mesmo mas o diagnóstico e a solução conspiram para encaminhar o rumo das coisas em outra direção. Os temas da distribuição tornam-se políticas compensatórias. Mas para Furtado, a injusta distribuição de renda é irmã siamesa da dinâmica de um sistema estruturalmente atravessado pelo desigual acesso aos bens da técnica e civilização. A distribuição injusta reproduz o modo injusto de produzir bens e serviços, de definir suas prioridades, suas relações com o trabalho e a propriedade, seus financiamentos e, mais importante, a articulação do Estado com a economia.
O Brasil continua a ser subdesenvolvido? Sim, se compreendemos que este conceito historicamente sintético diagnosticava a incapacidade do país produzir a autonomia da periferia ou semi-periferia para com o centro capitalista , a construção de um espaço nacional integrado e homogêneo capaz de incluir nos bens da civilização o conjunto de seu povo, a criação das condições estruturais para garantir o crescimento auto-sustentado. Não, se o compreendermos na circunstância histórica em que foi formulado quando a economia urbano-industrial brasileira ainda não tinha configurado plenamente o seu predomínio. O conceito de subdesenvolvimento só pode nos ser útil hoje se for historicizado e atualizado nos seus termos de composição.
Na obra de Celso Furtado o princípio da esperança enraizou suas razões. Sem elas, sem desenvolvê-las e aprimorá-las, será parca a colheita do futuro brasileiro.
*Juarez Guimarães é cientista político, editor do boletim Periscópio, da Fundação Perseu Abramo e da Secretaria Nacional de Formação Política do PT.