Depoimento: Lembranças PT
A partir de 1977 muitos em São Paulo pensaram na fundação de um partido de cunho socialista para entrar na luta contra a ditadura declinante. Lembro de uma reunião em nossa casa com a participação de três que voltavam do exílio: Almino Affonso, Fernando Henrique Cardoso e (creio) Plínio de Arruda Sampaio; e três antigos militantes do Partido Socialista Brasileiro: Febus Gikovate, Antonio Costa Correia e eu. Achou-se que era preciso, antes de mais nada, alguém dar uma entrevista falando abertamente do socialismo como socialista, a fim de testar a reação da censura. Eu fui encarregado, por ser o único dos presentes que não tinha sofrido punição ou perseguição. A entrevista foi dada a Jorge Cunha Lima e saiu na revista Isto É em setembro de 1977. Em 1978 fundou-se um centro de debates com o nome de "Paulo Emilio Salles Gomes", falecido no ano anterior, e houve reuniões para articular a oposição. Lembro de uma, enorme, em Santo André, onde estavam líderes metalúrgicos que dariam origem ao PT: Lula, Jacó Bittar e companheiros.
Eu tinha fases de hesitação e cheguei a achar que, no momento, em vez de fundar um partido valia a pena preservar ao máximo o volume da grande força oposicionista que era então o MDB, agrupamento de presença nacional, com muitos deputados e símbolo claramente identificável de resistência ao regime. Em 1979 já se falava no Partido dos Trabalhadores como organização em andamento. Então, eu ressalvava sempre que, caso ele fosse mesmo fundado, eu daria a minha adesão. Mário Pedrosa, entusiasta da idéia, procurou-me mais de uma vez para me catequizar, e no mesmo sentido manifestou-se Febus Gikovate num quarto da Santa Casa, na antevéspera de morrer, em outubro de 1979, dizendo que o PT era o nosso lugar porque correspondia ao que tínhamos procurado fazer. Eu havia participado de reuniões preparatórias no Sindicato dos Jornalistas, algumas com a presença de Lula, e não hesitei em ir à reunião histórica do Colégio Sion, em fevereiro de 1980, na qual me sentei ao lado de um antigo companheiro do Partido Socialista, Paulo Singer, vendo que lá estavam também outros companheiros mais velhos, como Lélia Abramo, Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda, que receberam grandes aplausos.
Lembro que chamou minha atenção um sinal dos tempos: a presença de pessoas originárias de opções ideológicas que alguns anos atrás se hostilizavam, por vezes com grande aspereza: stalinistas, trotskistas, socialistas democráticos. Ao vê-los reunidos em coexistência pacífica, como quem partilha de convicções comuns, percebi que estava começando uma era diferente na história da esquerda brasileira.
Saindo da reunião, depois de aderir convictamente ao novo partido, senti uma espécie de euforia, pois me pareceu que a fundação do PT justificava de fato o nosso passado, forjado na União Democrática Socialista de 1945, na Esquerda Democrática, fundada no mesmo ano e denominada Partido Socialista Brasileiro em 1947. O que tínhamos querido fazer fora uma agremiação política visando a lutar por meios democráticos pela instauração de um regime igualitário de cunho socialista, adequado à realidade do Brasil. Nesse sentido, remontávamos à lição de clássicos do socialismo e rejeitávamos a noção mecânica de diretrizes preparados pelos grupos mais importantes da esquerda internacional, que eram os stalinistas dos partidos comunistas, a oposição trotskista e a social democracia. Tivemos atividade ponderável em alguns setores e marcamos posição que o futuro justificaria, mas éramos poucos e tínhamos escassa base operária. Daí o interesse do PT que, ao contrário da tradição segundo a qual a iniciativa em tais casos era sempre de intelectuais da classe média, fora devida aos próprios operários. A maciça presença deles e a sua determinação de liderança mostrava que está finalmente em campo uma organização dotada de grande força transformadora, capaz de lutar com eficiência pelos nossos ideais.
A partir de então o PT obedeceu a tais premissas. Com mais acertos do que erros, com invariável retidão e muita competência administrativa nas esferas em que é chamado a governar – ele se tornou exemplo de agremiação que une a firmeza dos propósitos à flexibilidade dos meios, podendo acolher não apenas os que pensam como eu, mas uma variedade a meu ver salutar de posições, que são bem-vindas desde que não violem o pacto fundamental.
Eu não me enganara naquele dia no Colégio Sion, quando senti que estava no caminho certo e poderia encetar uma fase nova na rota do socialismo.
* Antonio Candido de Melo e Souza era, na época da fundação do PT, vice-presidente da Associação dos Docentes da USP, representante da entidade na memorável greve de 1979 contra o então governador Maluf. Hoje, é professor emérito aposentado e presidente do Conselho Editorial da Editora Fundação Perseu Abramo.