Uma história do feminismo no Brasil
por Rafael Evangelista
Em um país como o Brasil, com problemas sociais extremamente graves, há espaço para que o movimento feminista tenha destaque na luta política, ou sua causa fica subordinada à resolução das questões “emergenciais”? Depois da leitura de Uma história do feminismo no Brasil, a resposta para essa pergunta parece ser obviamente positiva. Ao levantar bandeiras como o direito ao voto e à eleição, à igualdade de salários perante aos homens e à proteção contra os abusos no ambiente de trabalho (como o assédio sexual), o movimento feminista tem contribuído sistematicamente para tornar o Brasil um país mais democrático, superando sua origem autoritária e oligárquica.
Esse dilema, a opção entre questões sociais mais gerais ou os problemas específicos das mulheres, no entanto, acompanhou boa parte da história do movimento feminista no Brasil. É o que mostra a autora Céli Regina Jardim Pinto ao contar essa história, costurada a partir de diversas outras obras que retratam momentos históricos particulares do feminismo brasileiro.
A autora divide o livro, e a história do feminismo, em quatro períodos principais: do fim do século XIX até a década de 30, quando a principal bandeira era o sufrágio feminino; do ápice da ditadura até o processo de redemocratização; o período da Constituinte; e as perspectivas abertas pelos anos 90.
Filha de Adolfo Lutz e com boa circulação entre a elite econômica e política, a moderada Bertha Lutz foi a principal líder feminista até a década de 30. Por meio de sua Federação Brasileira para o Progresso Feminino, ela foi uma das principais articuladoras da pressão política pelo sufrágio. Segundo a autora, ela reuniu três condições fundamentais que a levaram a ser uma das principais líderes. Ela tinha condições econômicas, pois vinha de uma família de elite; condições culturais dos pais, que lhe davam liberdade; e condições profissionais, pois era uma das raras cientistas que trabalhavam no serviço público.
Mas a luta no início do século XX não se reduziu ao sufrágio e a Bertha Lutz. Céli Pinto registra também a atuação das feministas no meio do movimento anarquista e operário e nas diversas publicações do fim do século XIX e início do século XX. Estas já lidavam com o dilema sobre a relevância da questão feminista frente às lutas de classe. As mulheres mais ligadas ao movimentos operário ainda colocavam como central a exploração do trabalho. Mas outras, ligadas a publicações independentes, já vêem a exploração da mulher como derivada da posição dominante do homem, que se interessaria em deixá-las à margem do espaço público.
Logo após a revolução de 30 e da conquista do sufrágio feminino, o que se vê é um grande hiato que durará até o fim da década de 60. A autora vê esse período como um refluxo para o feminismo. A discussão política foi muito pautada pela luta socialista, “não havendo espaço para lutas, chamadas na época de particularistas”.
Quando a efervescência mundial em torno das liberdades civis e da igualdade de direitos chega a seu ápice, no final da década de 60, encontra um Brasil oprimido pelo regime militar. Ao final da década de 70, o movimento feminista se torna uma das vozes mais importantes na luta pela anistia. O exílio também acaba por influenciar o feminismo no Brasil, ao colocar as feministas em contato com a Europa e os Estados Unidos.
Já no período posterior, na redemocratização, a questão passa a ser aderir ou não aos espaços políticos legítimos alcançados pela via eleitoral. Nesse período se destacam a atuação do Conselho Nacional do Direito da Mulher (CNDM), criado pelo governo federal, e a forte pressão feita junto à assembléia constituinte, que resultou em grandes avanços.
A partir da década de 90, a autora identifica uma transformação do feminismo no Brasil. As questões passam a ser incorporadas pela sociedade, que não tolera mais preconceitos de gênero e cor. Ao mesmo tempo, por meio das ONGs, a atuação do movimento se especializa em determinadas questões, como a da saúde, da violência e do racismo.
Uma história do feminismo no Brasil é um documento interessante principalmente pelo seu caráter panorâmico. Por meio dele, é possível perceber o fortalecimento gradual do movimento feminista, partindo da conquista de direitos mais básicos, como votar e ser votada, até vitórias que continuam a ser ameaçadas, como o direito ao aborto em caso de estupro e de risco de vida. Desde o fim do século passado até hoje, ao lutar por causas às vezes tomadas como laterais, o movimento contribui decisivamente para que os direitos daqueles que estão em posições sociais desfavoráveis sejam ampliados e respeitados.