Irmão meu e eu chegamos lá em abril de 64. A cidade cheirava a terror. Estava em.

"O exército já vem em Alagoinhas."

"Seu Elísio já foi preso…"

Em Irará, do ônibus para casa, passamos por um amigo, contemporâneo nosso, que nos cumprimentou só com o dedo indicador, e escondido na extensão do guidon da bicicleta. Um tal aceno assim camuflado me meteu muito medo.

Meu pai estava muito, muito assustado com a nossa chegada. Determinou que iríamos para o sítio de um amigo, bem longe da cidade. Um pequeno lavrador muito pobre.

Nessa noite, bateram à porta de casa. Ficamos quietos no quarto. Meus pais atenderam. Era o prefeito de Irará, seu Zé Valverde, do partido contrário ao da nossa família. Estava lá para oferecer préstimos a meu pai. "Qualquer coisa que precisasse, o que os meninos (nós) precisassem."

Ficamos paralisados no quarto, tal o terror com que o medo reinante da cidade impregnou a gente. Mas aquele gesto nos devolveu, a nós, a humanidade, a auto-estima – uma pequena centelha de respeito próprio.

Depois, no sítio de Pereira, ouvimos na "Hora do Brasil" o locutor dizer:

"Denuncie esse estranho que está aí na sua casa. Mesmo que algum amigo ou parente tenha pedido para você hospedá-lo. Denuncie, porque ele pode ser um subversivo" … etc. etc.

Quando ouvimos isso, nosso coração se constrangeu em tal humilhação e desespero que foi aquela visita do seu Zé que ainda nos deu coragem de olhar para os donos da casa.

Foi uma anistia provisória, mas um socorro de força, naquela falência.

Então, fiquei convencido de que há
Há os que amam prender a humanidade ao homem.
Há os que velam.
Entocados dentro do homem, alguns resistem.

Há o que sempre esteve desesperado contra o desespero.
Existe a nanica, a renitente, a ranheta, a obsessiva afeição pela espécie.
A bandeira dos sem:
a que vigia
a anistia.

 

*Tom Zé, músico, compositor, participou do movimento estudantil dos anos 70 e dos artistas pela Anistia/SP.

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