Seca e Poder
Por Mair Pena Neto.
O economista Celso Furtado, 77 anos, está em plena produção intelectual. Depois de lançar este ano o livro O Capitalismo Global (Paz e Terra), o ex-ministro do Planejamento de João Goulart apresenta nesta quinta-feira, a partir das 19h30, na Livraria da Travessa, Seca e Poder (Fundação Perseu Abramo), resultado de entrevista concedida a Manuel Correia de Andrade, Maria da Conceição Tavares e Raimundo Rodrigues Pereira. Superintendente da Sudene de 1959 a 1964, Celso Furtado continua pensando o Nordeste e seus problemas, principalmente o da seca, que, no seu entender, se resolveria com uma boa dose de vontade política de mudar a estrutura agrária do país.
Celso Furtado parte do diagnóstico de uma densidade populacional na zona semi-árida do Nordeste que não corresponde à sua capacidade de produção. “Não há nenhuma região semi-árida do mundo tão povoada como o Nordeste.”
Fronteira – Nos seus tempos de Sudene, Celso Furtado impulsionou uma migração de mão-de-obra do Nordeste para o Maranhão e sul da Bahia. “Assentamos mais de 100 mil pessoas no Maranhão”, recorda. Segundo Celso Furtado, existe uma subutilização de terras na zona úmida do Nordeste, que não justifica se manter tanta gente no semi-árido. “Um país com tanta terra, tanta fronteira aberta, não pode deixar tanta gente numa região com poucas possibilidades de desenvolvimento.”
Além deste movimento migratório, Celso Furtado prega uma modificação na estrutura agrária através de projetos de irrigação em pequenas áreas de terra para a produção de alimentos. “A água não é problema. A questão é a quem ela se destina. O projeto de irrigação dizia que o dinheiro posto pelo governo teria de ser de interesse social, não seria para reforçar o que existe como estrutura agrária.”
Celso Furtado se mostrou surpreso com a falta de ação preventiva do governo na seca deste ano. “Hoje existem muitos recursos para previsão. O governo sabia que essa seca vinha. O que me espantou foi o fato do governo não ter projetos e não iniciar uma ação rápida para evitar o escândalo.”
À época da seca, Fernando Henrique queixou-se de não ter sido bem informado, o que Celso Furtado atribui ao fato de o presidente estar cercado de gente interessada na indústria da seca. “Essas forças foram exatamente as que me derrotaram na Sudene. A seca é um negócio, porque significa muito dinheiro do governo chegando. Muitas fortunas foram feitas pela seca”, lamenta.
Ética – Celso Furtado vê o governo Fernando Henrique de mãos atadas para mudar a estrutura agrária do país. “Ele poderia até concordar com o que dissemos, mas uma coisa é a razão substantiva, outra é a razão operacional. Ele precisa do apoio da classe dominante. O vice-presidente, muito influente, é um homem do Nordeste, bem representativo da oligarquia nordestina. Como é o senador Antônio Carlos Magalhães, da Bahia: um operador muito hábil, que sabe tirar proveito de tudo, mas é contra qualquer coisa que toque no essencial.”
Em sua conversa com os três entrevistadores, Celso Furtado vai além da questão da seca. Fala sobre o pensamento único econômico que se tenta implantar no Brasil e nas Américas por jovens formados nas escolas norte-americanas, e condena a falta de ética de integrantes deste grupo. “Esses rapazes saem do Banco Central para dirigir bancos privados. Eu me recordo de uma história curiosa com Raul Prebisch, o criador do Banco Central da Argentina, de tremenda influência na América Latina. Ele me contou que quando saiu do Banco Central passou por grandes dificuldades financeiras, teve até de vender o piano da mulher. Eu arregalei os olhos: quem passara tantos anos chefiando o BC da Argentina teria o emprego que quisesse! E ele disse: “Mas Celso, eu conhecia a carteira de todos os bancos, administrava o redesconto por telefone, era o homem mais bem informado! Todos queriam me contratar, mas eu não podia trabalhar para nenhum.”
Celso Furtado conta ainda deliciosas histórias políticas sobre a sua permanência à frente da Sudene em governos tão distintos como os de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. “Nunca tinha visto o Jânio e o achava irresponsável, imaturo para presidir o país. Tanto assim que fechei minha gaveta e fui para a Índia. Quando voltei, o José Aparecido de Oliveira, chefe de gabinete do Jânio, disse que o presidente queria me ver o mais rapidamente possível. Mais tarde, me contou o que Jânio lhe havia perguntado: “E esse Celso Furtado?” Respondeu o Aparecido: “Ah, esse aí, você não vai ter a colaboração dele muito facilmente não; ele tem convite do mundo inteiro, está na Índia agora”. Parece que o Jânio ficou enciumado e mandou me chamar.”
Reportagem publicada no Jornal do Brasil, dia 12 de novembro de 1998.