O Brasil Privatizado
Por Marco Antonio Araujo.
Não discuto mais privatização com jornalistas, principalmente os da área econômica, que não leram O Brasil Privatizado, de Aloysio Biondi. Perdi a paciência. É muita preguiça, ignorância ou adesismo desconsiderar um livro tão fundamental para se entender o mais importante projeto político implantado no Brasil nas últimas três décadas. Editado pela Fundação Perseu Abramo, o opúsculo de 50 páginas já atingiu a estupenda marca de 120 mil exemplares. Porém, jamais seria esse best seller (nem sequer consta da lista dos “mais vendidos”) se dependesse da imprensa, que o ignora solenemente.
Por que tanto desinteresse? Que o governo não responda a nenhuma das denúncias de Biondi é até sintomático, embora não menos grave. Mas as páginas amarelas, vermelhas e daltônicas das grandes revistas semanais abrem espaço para toda espécie de emergentes, místicos, bajuladores ou apocalípticos de direita. No entanto, nenhum diretor de redação achou relevante entrevistar o autor de um rigoroso “balanço do desmonte do Estado” promovido por FHC e sua ekipekonômica (como ironiza Elio Gaspari).
A “espiral do silêncio” engendrada é um primor ideológico. Numa pífia resenha publicada pela Folha de S. Paulo (que ao menos notou a existência do livro), Gilson Schwartz fica constrangido por gostar da obra, escuda-se no preconceito “dos leitores” e lamenta que a editora seja uma instituição ligada ao PT. Por esse raciocínio, descarta-se de antemão a legitimidade de os partidos políticos darem alguma contribuição à sociedade. Depois reclamam quando se fecha o Congresso e se cassam registros de partidos. Quem dera cada legenda partidária tivesse uma editora publicando livros como Vida e Arte – Memórias de Lélia Abramo ou a antologia literária Com Palmos Medida, ambos da Fundação Perseu Abramo. Mas essa é outra história, mal contada.
Não verás país nenhum – Na cobertura dada a O Brasil Privatizado, salvaram-se apenas a mesma Folha – graças à coluna de Marcelo Coelho – e os programas de TV do Bóris Casoy e do Jô Soares, que cumpriram o dever de, ao menos, respeitar o que conhecemos como pauta jornalística. Jô, inclusive, abriu a entrevista alertando que Biondi deveria estar preso ou, caso contrário, seria necessário instalar uma CPI para apurar as graves denúncias contidas no livro.
Quando lhe perguntaram se conhecia o teor das informações do livro, um editor de uma grande agência de notícias (econômicas) imaginou articular alguma resposta ao dizer: “O Biondi é um fanático”. Esse tipo de preconceito, à parte a estupidez e o desrespeito, desmascara um pouco do que se constrói nas redações, ou seja, um viés perverso que busca desqualificar o que não é senso comum ou versão oficial. Arrogância pouca é bobagem quando o que está em jogo são convicções pessoais – ou cargos de chefia. Contra argumentos, não há fatos – isso é o que mais se aproxima da subversão em voga na grande imprensa.
São muitos os exemplos citados por Biondi que justificariam o máximo de indignação, ou um mínimo de curiosidade mórbida. Literalmente, não sobra nada. Estão lá, acompanhados de gráficos e tabelas, os números que dão a dimensão do que foi feito com o patrimônio público acumulado durante décadas. São informações, todas checáveis. Telebras, Vale do Rio Doce, CSN, Light, Banerj, Embraer, Rede Ferroviária e, na ponta da agulha, Petrobras e Banco do Brasil: fica a impressão de que foi orquestrado um desmanche a toque de caixa e a sangue-frio. Não cabem discursos doutrinários ou reducionismos retóricas. As questões colocadas não partem do princípio de se ser a favor ou contra privatizações. O ponto central é como foram privatizadas as empresas no Brasil. Estão lá expostos processos viciados, moedas podres, juros largamente subsidiados, impressionantes preços mínimos, contas falsas, dívidas assumidas pelo governo, tarifas “recompostas” antes das vendas e uma avalanche de suspeitas contra o modelo brasileiro de privatização.
Loas – Tenho o privilégio de trabalhar com Aloysio Biondi, professor notório saber da Cásper Líbero. Foram três anos para convencê-lo a dar aulas. Não escondo a profunda admiração que cultivo por ele. Tenho orgulho dos meus ídolos – são poucos, aliás: Cláudio Abramo, Mino Carta e ele, Biondi. Admiro sua coragem profissional, decência moral superlativa e inteligência rara. Biondi deveria estar dirigindo grandes redações. Mas enfrenta o ostracismo imposto por antigos patrões e novos desafetos, todos poderosos. No início de agosto, foi contratado pelo Diário Popular para assinar uma coluna diária. Azar dos leitores da Folha de S. Paulo, que ficaram privados dos artigos com os quais Biondi, toda semana, torpedeava os descaminhos econômicos do governo. Pena que, durante esse tempo, tenha sido solenemente ignorado inclusive pela própria Folha, que jamais repercutiu os prognósticos lúcidos e análises implacáveis do colunista.
* Marco Antonio Araújo – é coordenador do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e das revistas Educação e Ensino Superior. [email protected]
Artigo publicado na revista Jornal dos Jornais em setembro de 1999.