A lei da Anistia, a despeito da generosa campanha pública que acelerou um desfecho já previsível foi, a meu ver, um ato apenas formal, sem efeitos práticos a curto prazo a não ser para poucos casos. Além disto, ela foi, a rigor, um ato ilegal pois decretado pelos mesmos poderes que deflagraram o golpe de 1964 e decretaram "ilegalmente" os atos institucionais, culminando, em fins de 1968, com o Ato Institucional nº 5, que radicalizou a lei de Segurança Nacional da Ditadura Militar, nos termos da qual foram condenados aqueles que seriam ironicamente anistiados em 1979. Não me senti portanto anistiado (assim como não tinha me sentido condenado em 1973) por não ter lavrado procuração seja para quem fosse, sobretudo os ligados à Ditadura, para me "perdoar" de atos de militância na oposição a ela que me "condenou" com base na sua lei ilegal e, ainda por cima, no mesmo pacote que anistiou seus verdugos de plantão, inclusive aqueles que me torturaram.

Preso em 1970, fui condenado no primeiro semestre de 1973, pelo Tribunal Militar de São Paulo, a dois anos de prisão, tendo a ela retornado, após uma interrupção em liberdade condicional ("menage") e a confirmação da minha sentença pelo Superior Tribunal Militar, e terminado de cumprir pena em fins de 1973, no Presídio Tiradentes em São Paulo. Em outras palavras, a Anistia, como tal, só me afetou na prática, ao me restituir a condição de réu primário em qualquer delito previsto no código penal que viesse a cometer futuramente. Moralmente, eu era credor; o devedor era a Ditadura. Creio que foi essa, no fundo, a situação dos que foram atingidos pelo arbítrio da Ditadura Militar pois, em 1979, quando foi promulgada a lei da Anistia, a esmagadora maioria já estava solta ou em processo de soltura, e a maioria dos exilados, ainda fora do país, com suas possíveis penas provavelmente já prescritas. Em 1979, a reabertura política já estava sendo "presenteada" à Nação pela Ditadura em falência e sem saída. A agitação da campanha pela Anistia, como mais tarde se confirmou na campanha pelas "diretas já", não passou, por parte de uma minoria da população brasileira, a despeito dos grandes comícios, de um gesto participativo, generoso sem dúvida, mas passageiro e, sobretudo, sem riscos, que parecia, como outros, se esgotar em si mesmo sem acúmulo real no processo de correlação de forças. Minoria essa politizada, mas sempre comodamente ausente da militância consistente e regular no combate às iniquidade do sistema, como já tinha ficado amplamente confirmado pela sua omissão nos mais de 15 anos de arbítrio da Ditadura Militar, com seus instrumentos de tortura e assassinato. Nesse processo, é preciso salientar as exceções, como, por exemplo, a mais marcante delas – o conjunto de manifestações e greves dos trabalhadores do ABC paulista em 1979/1980, que desaguou na fundação do PT, da qual também participei.

Qual o grau de importância da "conquista" da Anistia no processo de redemocratização do país, talvez o "possível politicamente" naquele momento, mas insuficiente, realmente não sei avaliar. O que é preciso não esquecer é que, indubitavelmente, essa campanha, como as outras da época, foi iniciativa e direção de uma abnegada e corajosa minoria daqueles queridos companheiros dos mais diversos matizes que nunca se entregaram e que mantiveram, e mantêm até hoje, seu potencial de indignação e contestação sempre fervendo a pleno vapor na panela de pressão. O fizeram não apenas como participantes passivos dos eventos de "cartasis" coletiva como, por exemplo em São Paulo , o ato ecumênico da catedral de São Paulo em memória de Vladimir Herzog ou o enterro de Santo Dias, ambos assassinados pela repressão e mesmo dos grandes comícios da Praça da Sé e do Anhangabaú, atos todos dos quais participei na condição de "massa", mas como militantes ativos na tentativa, por vezes quixotesca e romântica, de transformar a história.

 

*Maurício Segall, ex-preso político. Museólogo, dirige o Museu Lasar Segall.

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