A Anistia Política, conquistada no dia 28 de agosto de 1979, é uma das mais importantes datas a serem comemoradas pelos democratas, em nosso País. Ela não veio como a queríamos – ampla, geral e irrestrita -, mas mesmo assim foi o coroamento de um dos principais movimentos de oposição ao regime militar. Representaram um papel fundamental nessa conquista o Movimento Feminino pela Anistia e os Comitês Brasileiros pela Anistia, surgidos em 1975 e 1978, respectivamente, e que rapidamente espalharam-se pelo país.

A resistência contra a ditadura, entretanto, começou já no 1º de abril de 1964. Adolescente, participei nesse dia de manifestação de rua, no Recife, contra a deposição do governador Miguel Arraes, legitimamente eleito pelo povo pernambucano. E a poucos metros de mim vi tombar, vítimas de balas assassinas, os estudantes Ivan Rocha Aguiar e Jonas José de Albuquerque Barros, dois dos primeiros jovens mártires da luta pela redemocratização.

Nos anos 60, durante a primeira fase do regime ditatorial, os estudantes desempenharam um importante papel político no País. Ao ingressar na Faculdade de Direito, em 1966, engajei-me na luta que então se travava, de resistência democrática e em defesa de uma universidade crítica e participativa, contra os acordos MEC/USAID. A violência governamental, entretanto, crescia aceleradamente, e a prática da tortura e dos assassinatos foi se tornando corriqueira. Cândido Pinto, por exemplo, estudante de engenharia e presidente da UEP, foi vítima de atentado a bala, que o deixou paralítico, em maio de 1969. Um mês depois, foi torturado e assassinado o Padre Henrique Pereira Neto, pároco da juventude da Arquidiocese de Olinda e Recife.

Esse processo culminou com a decretação do Ato Institucional nº 5, em dezembro aquele ano. Sobre os políticos, parlamentares e militantes de organizações populares desabou uma avalanche de prisões e cassações arbitrárias. Sobre os estudantes e professores que se opunham democraticamente aos militares, caiu o Decreto Lei 477, que determinava a expulsão da faculdade e a proibição de freqüentar qualquer curso universitário no País pelo prazo de três anos.

Quartanista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, fui vítima do 477, ao lado de Eneida Melo Correia de Araújo, Marlene Diniz Vilanova e Valdomiro Pereira Barros, meus colegas de turma, além de José Áureo Bradley, que cursava o segundo ano. As perseguições se tornaram freqüentes também contra a minha família, composta de dez irmãos, todos engajados na luta pela democracia e solidários aos opositores do regime, em risco de vida.

Fui então, como tantos outros brasileiros, obrigado a me exilar. Percorri diversos países europeus como Portugal, Espanha, França, Alemanha, Inglaterra, Holanda e Bélgica, nesse último trabalhando como operário.

Retornei ao Brasil em 1971, passando a viver no Rio de Janeiro. Nessa época minha irmã, Rosalina Santa Cruz Leite, e seu esposo, Geraldo Leite, foram presos, no Rio, e torturados barbaramente, ficando detidos por um ano. Passamos então a participar da rede de solidariedade aos familiares de presos políticos que passou se articular. A esse movimento se juntaram instituições civis, e cidadãos democratas, que vieram em seguida a fundar o Comitê Brasileiro de Anistia, em 1978.

Participei da fundação desse Comitê e integrei a comissão dos "Mortos e Desaparecidos Políticos", que desenvolvia atividades articuladas com as comissões de "Presos e Torturados" e "Exilados e Perseguidos", e com outros comitês instalados pelo Brasil. Essa comissão, que antecedia a fundação do próprio Comitê, tinha atuação destacada e, no seu trabalho, um enorme carga de emoção.

Os que dela fizemos parte não podemos esquecer da dor que era listar os nomes dos familiares e companheiros assassinados – entre os quais meu próprio irmão, Fernando Santa Cruz, desaparecido no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1974, juntamente com Eduardo Collier Filho.

Foram anos de um trabalho doloroso, arriscado e difícil, em confronto com a violência da repressão, convivendo com as angústias das greves de fome dos presos políticos e com o silêncio dos meios de comunicação, amordaçados pela censura. Mas da época também nos vêm muitas lembranças da solidariedade, abnegação, coragem e enorme despreendimento dos que participaram desse movimento.

Entre tantos companheiros, nos recordamos, por exemplo, de Abigail Paranhos, a "Biga", uma das fundadoras do Comitê Brasileiro de Anistia no Rio de Janeiro, maravilhosa figura humana que sofreu bárbaras torturas nos "porões" do regime. E de Jair Ferreira, dirigente da Ação Popular Marxista Leninista, uma verdadeira legenda na luta antiditatorial, que esteve na clandestinidade desde 1964, com o codinome "Dorival", e com a maior simplicidade se apresentou, surpreendendo a todos nós numa das reuniões do Comitê.

A Anistia finalmente chegou, há 20 anos. Não como a queríamos – ampla, geral e irrestrita -, mas permitiu, entre outras conquistas, a volta de muitos brasileiros que até então permaneciam no exílio, e a libertação de outros que ainda penavam nos cárceres da ditadura. Devemos comemorá-la com alegria, mas sem esquecer que ainda faltam mortes e desaparecimentos a serem apurados, e crimes contra a humanidade a serem punidos.

 

*Marcelo Santa Cruz de Oliveira, advogado, Coordenador Adjunto do Cendhec – Centro D. Hélder Câmara de Direitos Humanos, Vereador em Olinda, PE, pelo Partido dos Trabalhadores. Familiar de desaparecido político.