Lélia Abramo viaja pelos palcos da memória
Aos 86 anos a atriz Lélia Abramo lança um fascinante livro de memórias, daqueles que se lê de um fôlego só. Sem derramamentos pessoais, numa narrativa direta, quase jornalística, o livro propicia uma viagem por importantes acontecimentos históricos não só do Brasil, mas também da Itália, onde ela viveu entre 1938 e 1950.
Vida e Arte – Memórias de Lélia Abramo
(272 páginas) será lançado hoje, às 19 horas, no Espaço Lélia Abramo, na Rua Carlos Sampaio, 305, Estação Brigadeiro do Metrô.
Lélia Abramo só se tornou atriz aos 47 anos. Estreou no papel de Romana, na peça Eles não Usam Black-Tie, de Guarnieri, sob direção de José Renato na montagem histórica do Teatro de Arena, em 1958. O papel valeu-lhe vários prêmios, entre eles o Saci, promovido pelo Estado, "a mais importante premiação teatral na época", como conta no livro. A partir daí, encenou mais de 20 peças, participou de 14 filmes e 27 novelas, sempre com grande sucesso. Ao longo da carreira ganhou diversos prêmios, entre eles o Moliere.
O sonho de ser atriz, acalentado desde a infância, foi interrompido em 1979, quando foi demitida da tevê. No livro, conta que a demissão foi motivada por sua atuação como presidente do sindicato dos artistas de São Paulo. "Não tenho como acusar abertamente, porque eles usaram um subterfúgio: mataram meu personagem numa novela", comentou em entrevista ao Estado.
Ao aceitar o cargo, ela previa que a atividade sindical iria prejudicá-la, mas conta que achou antiético abandonar aquela turma de jovens que lutava sem nenhuma estrela apoiando. "Foi uma atitude da qual não me arrependo, mas a demissão causou-me um desgosto enorme e foi a causa de meu enfarte, pouco depois, em setembro de 1979." A conseqüente fragilidade física acabou por limitar também sua atuação no teatro.
Mas as memórias da atriz estão longe de ter um tom amargo e mais longe ainda de se limitar ao teatro.
Filha de imigrantes italianos cultos, Lélia é irmã do premiado artista plástico Lívio Abramo, do jornalista Cláudio Abramo e do diretor e crítico teatral Athos Abramo, entre outros intelectuais da numerosa família. Ela diz que resolveu escrever o livro para resgatar a memória dos irmãos, cuja importante contribuição ao País nos mais diversos campos foi esquecida.
Mas o livro acabou indo muito além desse resgate. A atriz começa contando sua infância privilegiada numa família que se reunia todas as noites para discutir arte e política. Nessa narrativa, traça um delicioso retrato da São Paulo dos anos 20. E essa é a tônica de todo o livro. Um relato pessoal que acaba resultando na memória de uma época. Lélia viveu um perído do grandes transformações e esteve no centro de muitas delas.
Certamente um dos relatos mais emocionantes é o de sua permanência forçada na Itália durante a 2ª Guerra. A viagem, para tratar da saúde, estava progamada para durar um ano, mas a guerra impediu sua volta ao Brasil. Sobre esse capítulo, o professor e crítico literário Antônio Cândido comenta no elogioso prefácio: "Essa parte é escrita num ritmo crispado e prende o leitor como se ele estivesse participando de uma experiência viva."
"A guerra é uma vivência muito forte, inesquecível", afirma Lélia. O interesse da narrativa, porém, não se limita a esse período. A história de um amor proibido, o encontro com Vladimir Herzog, Rubem Braga e Lula, a Praça da Sé transformada em campo de batalha em 1934, na luta contra os integralistas de Plínio Salgado, são algumas das muitas
histórias contadas pela atriz. Passando ao largo de fofocas de camarins, Vida e Arte revela a vida de uma corajosa mulher, que nunca cedeu em suas convicções políticas ou éticas, mesmo quando o que estava em risco era sua vida.
Publicada no jornal O Estado de São Paulo, 03/12/97