1979. Fazia um ano que minha família havia mudado para São Paulo, uma cidade que eu repelia com o ódio que só os adolescentes são capazes de sentir. Mas aos 15 anos, quase 16, não custou muito para a adolescente que eu era passar do ódio ao amor incondicional pela cidade. Ainda que ela fosse poluída, fétida, entupida de carros, que eram as coisa que mais me incomodavam a princípio, São Paulo era alucinante e alucinada. Tinha vida e, principalmente, vida política. Isso eu vinha aprendendo desde o fim de 78, quando fiz campanha para Fernando Moraes– "O candidato da maioria silenciada"–, que pleiteava um lugar na Câmara Estadual, e Fernando Henrique, um intelectual que acabara de voltar do exílio e queria o Senado.

Era tudo feito de uma forma febril, com a certeza de que poderíamos mudar os rumos políticos do País (e acho que de certa forma mudamos mesmo). Panfletagens, reuniões, discussões, correria. Boca-de-urna feita na saliva, no convencimento; com uma fé e uma verdade que nunca mais fui capaz de ter pela política. Paixão.

O Brasil vivia um momento especial, crucial, empolgante. Fernando Moraes foi eleito, Suplicy, Geraldinho Siqueira, Alberto Goldman, Airton Soares, estavam todos lá. "Vitória" eleitoral também para o candidato ao Senado, Fernando Henrique, que ficou como suplente de Montoro.

Eu e a moçada que integrava a campanha estávamos superentusiamados. No final dos anos 70 ainda tínhamos uma nostalgia por um passado que não havíamos vivido. Todo mundo queria ser um pouco "guerrilheiro, forasteiro, orra, meu"! Havia uma causa para se lutar: a redemocratização do País. "O povo unido, jamais será vencido", acreditávamos piamente. Passeatas, atos políticos na Sé pela Abertura e pela "Anistia ampla, geral e irrestrita". Palavras de ordem, repetidas com a convicção dos puros, aos urros, aos berros na Sé, com fé.

A praça da Sé era o point, ou o locus privilegiado de ação, como preferirem. Lembro-me de um dia, em que passando por lá, vi um pequeno grupo em torno de uma mulher que falava sobre o marido exilado. Parei. Ouvi tudo aquilo como quem tem uma revelação. Não que eu desconhecesse aquela realidade, mas daquela forma, contada por uma pessoa que vivia o drama, uma testemunha… era forte e verdadeiro. Anistia, já. Abertura, já. "Ninguém agüenta mais a ditadura dos generais"!

Assassinaram Santo Dias, um operário que fazia piquete em uma greve na zona sul de São Paulo. Fez-se uma imensa passeata que desceu da Igreja da Consolação até a Sé. As pessoas saiam às janelas e jogavam papel picado sobre a gente, aplaudiam, outros engrossavam a marcha. Eu estava inteiramente arrepiada e comovida. Lembrando-me desse momento ainda me emociono. "Você aí parado também é explorado", gritávamos tentando convencer as pessoas a nos seguirem até o ato.

Logo depois, começaram a chegar os presos políticos. Íamos com faixas e farra recebê-los. Gabeira, Brizola, Arraes, Almino Afonso… Depois chegou o "Velho", o camarada Prestes, um verdadeiro ícone. Lá estávamos nós na Lapa, em um sindicato, se não me engano, para ouvi-lo.

Dias febris. Covas e Almino foram ao diretório do MDB, antigo comitê de campanha de Fernando Moraes, para uma espécie de palestra. Nós, os "jovens", boiamos. A gente era meio porra-louca e não entendia muito bem aquele negócio de "questão de ordem, companheiro", " um à parte", "mesa, por favor, mesário, ordem". E os termos, então?! Conjuntura, revisionismo, esquerdismo, rachar, maoistas, tendências, stalinista… Precisávamos, urgentemente, ler o Manifesto, Lenin, Che, Plekhânov; ir mais além e ler Reich, discutir a sexualidade, a questão da mulher, das minorias. De repente o mundo havia crescido, nós havíamos crescido e o País… quanto otimismo, companheiros, quanto otimismo. Os presos políticos voltavam, a oposição tivera – uma ano antes, em 1978 – uma vitória esmagadora nas eleições para o legislativo, a censura começava a cair, as passeatas e os atos engrossavam. Havia um clima de festa (sem essa de tachar de esquerda festiva esse envolvimento tão honesto de parte de uma geração que se alfabetizava em política).

A imprensa nanica ganhava espaço e leitores. Vendíamos pôster do Che. Usávamos boina do Che. Citávamos Marx. Cuba era um sonho. A música latino-americana de protesto virava febre… "Soy loco por ti América, ellos no pasaran" e "amanhã vai ser outro dia", isso era tão certo quanto a revolução.

Vinte anos depois, a sensação que fica é de que Walter Benjamin tinha razão: todos somos personagens históricas. E fomos. E somos.

Larissa Pelúcio militou no extinto MDB e hoje é filiada ao PT em São Carlos (SP); professora de história, cursando graduação em Ciências Socais na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

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