Joviniano Neto -Anistia: lições e lembranças
Uma avaliação
Uma avaliação
A experiência de ajudar a fazer e acelerar a história do Brasil contra a resistência dos que pretendiam limitar e amesquinhar a democratização. A vivência de uma compreensão e solidariedade, acima das divergências políticas e ideológicas, com todos os combatentes contra a Ditadura Militar e com as vítimas da repressão, muitas vezes eles próprios, outras os seus familiares. A progressiva certeza de que ajudava a abrir nova fase da luta pelos direitos humanos, não só nas esquerdas, mas no Brasil. A memória de uma série de momentos inesquecíveis. Estas as lições da minha participação no movimento da Anistia como Presidente do CBA – Comitê Brasileiro pela Anistia, membro da Coordenação Nacional dos Movimentos de Anistia e Presidente do CADH – Comitê de Anistia e Direitos Humanos. Destas lições, mais ou menos no espaço que me foi solicitado, darei breve notícia.
A luta dos movimentos pela Anistia conseguiu, em 1978/79, ampliar a lei quando os militares e Figueiredo falavam inicialmente em revisão de processos (que processos? em muitos casos nem processos, mesmo facciosos, existiam) e revisão de cassações. A anistia de 1979 não só foi a mais longa a ser concedida na história do Brasil. De 1964 a 79 passaram-se 15 anos. Foi, também, pelas resistências e mesquinharias, a mais demorada a ser aplicada. Após 1979, a luta continuou até a Constituinte de 1987/88 quando foi ampliada, até 1995 quando a lei reconheceu a responsabilidade do Estado pelos desaparecidos políticos e criou comissão que concluiu seus trabalhos em 1998 com casos pendentes e com os familiares ainda procurando corpos e circunstâncias das mortes. E durante todo esse tempo milhares tiveram de lutar para conseguir reintegração, aposentadorias e indenizações. Por tudo isto a anistia de 1979 não gerou esquecimento, mas o julgamento do Regime Militar.
A luta contra a ditadura, as prisões e punições arbitrárias, a espionagem pelo SNI, as torturas e mortes contribuíram para que as esquerdas valorizassem a luta pelos direitos humanos, minimizada, antes de 1964, como parte do ideário liberal ou como garantias já consolidadas no período democrático de 1946/64. A história mostra o momento da luta pela Anistia como o do surgimento de organizações e lutas que estão na base do movimento nacional de direitos humanos que, hoje, reúne mais de 300 entidades no Brasil. O primeiro encontro nacional dos movimentos de anistia e direitos humanos, realizado em 1978, em Salvador, no CEAS – Centro de Estudos e Ação Social, presidido por mim e do qual saiu a coordenação nacional, já reunia representantes do Movimento Feminino pela Anistia, Comitês Brasileiros pela Anistia e Sociedades de Defesa dos Direitos Humanos. E ai já começamos a falar de eventos memoráveis. Lembrarei rapidamente e fora de ordem, alguns dos tantos que aconteceram na Bahia.
Eventos memoráveis – alguns
A abertura do II Congresso Nacional de Anistia, em dezembro de 1979, em auditório do Colégio 2 de Julho (presbiteriano) o maior que conseguimos, depois de procurarmos mais de 30 lugares enfrentando a pressão dos agentes que fechavam portas, mesmo aquelas que, diante do pedido do Cardeal D. Avelar, inicialmente admitiam se abrir. A sensação de vitória – o auditório superlotado, extravasando gente pelas escadas, corredores, pátio. Uma imensa mesa diretora com representações de todas as oposições e grupos atingidos. O apoio de um conjunto de entidades – Clube de Engenharia, Associação dos Sociólogos, Associação dos Funcionários Públicos, Escolas, etc… que, na ausência de local único, descentralizou os trabalhos no Congresso possível. Junto com a vitória a percepção das dificuldades e da pressão para abafar a luta por parte de adversários e antigos aliados.
A alegria das filhas pequenas de Haroldo Lima, no dia da sua soltura e no gabinete do diretor do Presídio. E a reação do agente penitenciário impedindo que se fotografasse uma delas sentada na cadeira do diretor – "vocês querem que ele seja demitido"?
O baixo, intenso e dolorido depoimento de Dilma Alves, no antigo Teatro Vila Velha falando de Mário Alves, baiano, ex-deputado, morto de modo mais cruel (empalado com um cano de ferro) pelos torturadores.
A beleza da Hora Santa – momento de reflexão e orações – realizada na Capela do Colégio Antônio Vieira, em apoio a presos políticos em greve de fome. Um momento no qual a Igreja Católica, graças inclusive à ação de Padre Renzo Rossi, visitador dos presos políticos no Brasil e pároco na Capelinha de São Caetano em Salvador, já revira a rejeição a greve de fome como uma forma de suicídio para entendê-la como uma forma limite de luta pelos direitos e pela vida.
A alegria de Elis Regina após abrir espaço no Teatro do Instituto Normal para a manifestação do CBA, com o entendimento e o apoio do público que entendera o recado de suas músicas.
As passeatas, a repressão, as prisões e a libertação dos manifestantes que levavam à rua a luta pela Anistia e as tergiversações do governo estadual, ordenando e negando a ações repressivas feitas pela Polícia Militar.
A Ação de D. Avelar visitando presos políticos, rezando missas, apoiando Padre Renzo e o movimento sem perder a imagem de moderado. E do seu irmão, Teotônio Vilela, Senador, visitando as prisões e, apoiado na bengala, discursando na rua, mostrando que se pode viver e lutar bem na sombra da morte.
A fúria da direita e as ações desencontradas e arbitrárias das autoridades quando Theodomiro Romeiro dos Santos, primeiro preso político condenado à morte e que não seria atingido pela lei de Anistia, fugiu da penitenciária. Theodomiro era um mito raivosamente construído pela direita – o "bandido" que "covardemente" havia morto um sargento da aeronáutica. Mito que esquecia que o "sargento" estava à paisana, participando de uma ação policial de seqüestro à qual provavelmente se seguiria tortura e, talvez, morte. Theodomiro era símbolo – seu retrato quase adolescente, algemado no julgamento, corria mundo nos cartazes da Anistia.
A colocação da placa da pequena Rua Jorge Leal Gonçalves, a primeira em Salvador homenageando um desaparecido e colocada em bairro (Itapagipe) no qual viveu. Na década de 1990, gestão Lídice da Mata, todos os desaparecidos políticos baianos ganharam nome de Rua e um bairro – ironia da história – chamado "Castelo Branco".
Os poetas nas praças lançando o grito dos "filhos da noite" e cordelistas traduzindo a Anistia para a tradição popular / sertaneja.
Tantos eventos. Termino com uma primeira lembrança. Presidente da ASEB – Associação dos Sociólogos do Estado da Bahia, espaço onde inicialmente funcionou o CBA, no meu primeiro pronunciamento, ainda reticente com a idéia da Anistia esquecimento e reconciliação, comecei falando "a palavra Anistia significa (etmologicamente) esquecimento. Mas, eu não quero esquecer". E lembrei da morte ou tortura de companheiros de geração. A história e a mesquinharia dos governantes e a luta dos movimentos de Anistia fizeram com que a Anistia de 1979 não produzisse esquecimento, mas memória e julgamento da Ditadura Militar. E convicção da necessidade de aprofundar a luta pelos direitos humanos e democratização.
* Joviniano Neto, sociólogo, ex-presidente do CBA (Comitê Brasileiro pela Anistia), Núcleo da Bahia e do CABH (Comitê pela Anistia e Direitos Humanos) e atual presidente da ASEB (Associação dos Sociólogos do Estado da Bahia).