Anistia: a luta continua

II Congresso Nacional de Anistia


Por Perseu Abramo

Apoio às lutas dos trabalhadores e continuidade das campanhas nacionais de anistia – as conclusões do Congresso de Salvador

Movimento 28/11 a 2/12/1979

A continuidade, a intensificação e a ampliação da luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, foi o saldo positivo central do II Congresso Nacional de Anistia, que se realizou de 15 a 18 de novembro em Salvador, na Bahia, em meio a dificuldades organizativas, incompreensões políticas e franca hostilidade dos setores conservadores e direitistas. Nenhum desses empecilhos, todavia, impediu que fosse unanimemente aclamado por todos os participantes o documento final do Congresso, que traz por tema e título "A luta continua", e que contém uma brevíssima análise conjuntural e as principais resoluções políticas aprovadas.

Os participantes foram numerosos e diversificados, representando não apenas as entidades específicas de anistia como também entidades de caráter nacional das mais diversas – como a UNE e o Movimento Negro Unificado – e entidades estaduais, municipais, rurais e até de bairros. Todos tiveram ampla oportunidade de expressão: as discussões foram travadas tanto nas comissões quanto nas sessões plenárias, e, nas primeiras, todos tinham direito a voz e voto; na plenária, todos tinham direito a voz (direito cujo uso não regatearam) e, a voto, apenas os representantes (um voto por bancada) de entidades de anistia, entidades nacionais e entidades estaduais, com os pesos, respectivamente, de três, dois e um. Consideram-se entidades de anistia os Comitês Brasileiro de Anistia (CBAs), os Movimentos Femininos pela Anistia (MFPAs), e as Sociedades de Defesa de Direitos Humanos (SDDHs). Cerca de 50 entidades tiveram direito a voto, e participaram dos debates representantes de quase 100 entidades.

O temário do Congresso foi dividido em oito comissões, as duas primeiras tratando das vinculações entre a luta pela anistia e as questões nacionais, legislativas e políticas, e os movimentos populares, e as demais seis comissões afetas aos diversos tipos de atingidos pela repressão (presos, exilados, mutilados, mortos e desaparecidos, afastados, não reintegrados, não anistiados etc. Funcionou durante o Congresso, também, uma comissão técnica especial, constituída de um representante de cada entidade de anistia, destinada a formular propostas organizativas para uma estrutura nacional dos movimentos de anistia. Como resultado desses trabalhos, estabeleceu-se que o conjunto das entidades de anistia formará o Conselho Nacional de Anistia e será dirigido por uma Comissão Executiva Nacional constituída de representantes de entidades de anistia indicadas por cada um dos quatro Conselhos Regionais em que foi dividido o País: Norte/Nordeste, Leste, Centro-Oeste e Sul. O primeiro Conselho Nacional reunir-se-á dentro de três meses em Belo Horizonte, e, até lá, a direção será exercida por uma Comissão Nacional Executiva Provisória, constituída pelas entidades de anistia de São Paulo, Rio, Paraná, Bahia e Pernambuco.

O documento final do II Congresso, depois de declarar a disposição e o compromisso de "continuar e intensificar unitariamente" a luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, "até a derrocada final e definitiva do arbítrio e do autoritarismo", afirma que esse compromisso decorre do próprio caráter parcial da anistia conquistada à ditadura em agosto, lembrando que ainda existem presos, exilados, mortes e desaparecimentos impunes e sem explicação, e que ainda permanece o aparato repressor no País.

A seguir, o documento reconhece as vitórias já obtidas nas campanhas de agosto e setembro: "vitórias conquistadas com ardor e firmeza, vitórias obtidas no Parlamento e nas ruas, nas greves de fome dos presídios políticos, nas escolas e nos bairros da periferia." Lembra, contudo, que essas vitórias precisam ser completadas, com a libertação imediata de todos os presos políticos, com a volta de todos os exilados, com a apuração das mortes e dos desaparecimentos, com o fim do aparato repressor.

O documento passa, então, a apontar os novos elementos conjunturais que indicam a necessidade da ampliação da luta.: "Reivindicações sociais e econômicas despontam por todo o território brasileiro, nas fábricas, nas escolas, nas favelas, nos bairros de periferia, nas terras dos latifundiários, nas aldeias indígenas. Começa a delinear-se uma nova conjuntura. A irresistível marcha histórica dos movimentos sociais obriga a Ditadura a redirecionar sua política repressiva. A repressão, agora, amplia-se e se generaliza, e se volta especialmente contra o movimento operário e popular dos grandes centros, contra as reivindicações dos trabalhadores, contra a greve, contra os sindicatos combativos, contra as oposições sindicais. Os trabalhadores da cidade e do campo, os movimentos populares, já não têm dúvida de quem são seus inimigos principais: o patrão e a polícia, o dono da terra e o Governo, a Ditadura, enfim, no seu duplo caráter de exploradora e opressora do povo. E as lutas populares por melhores condições de vida transformam-se, assim, na luta contra a repressão, repressão que tenta impedir os trabalhadores e o povo em geral de se expressarem, de reivindicarem, de se organizarem."

O documento continua: "A luta contra a repressão – que é a luta central de todos os movimentos de anistia – dá-se agora em novas trincheiras, e encontra novos aliados. A conquista da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita passa agora, também, pelas portas das fábricas, pelas favelas e pelos campos. Quanto maior a repressão contra os trabalhadores e os setores populares, mais a luta pela anistia se vincula à luta dos movimentos sociais contra a repressão. Novas tarefas acrescentam-se aos movimentos e aos militantes da anistia, tarefas impostas pelas exigências da luta dos movimentos populares contra a repressão".

As resoluções políticas que se seguem a essa introdução, no documento, refletem as teses aí expostas: continuidade e intensificação das campanhas tradicionais dos movimentos de anistia (libertação de presos políticos, volta dos exilados, apuração de mortes e desaparecimentos, reintegração de afastados e fim da LSN e do aparato repressor) e ampliação para a articulação do apoio político à luta dos trabalhadores da cidade e do campo e dos movimentos populares contra a repressão, sempre de comum acordo com a direção política desses movimentos. Durante as discussões, tanto nas comissões quanto em plenário, fez-se absoluta questão de se acentuar, sempre, que as entidades de anistia não pretendem dirigir o movimento popular e de trabalhadores, e nem substituir, nessa tarefa, os partidos políticos.

As campanhas prioritárias estabelecidas pelo II Congresso exprimem com fidelidade as resoluções políticas aprovadas: libertação imediata de todos os presos políticos, volta de todos os exilados, reintegração de todos os afastados e todo apoio à luta dos trabalhadores da cidade e do campo e dos movimentos populares contra a repressão.

O documento, aprovado na última sessão plenária – foi lido ao público na sessão de encerramento, na presença de Ana Dias, viúva do metalúrgico Santo Dias da Silva, assassinado pela ditadura, e do senador Teotônio Vilela.

Realidade nova, congresso diferente
No intervalo de um ano que decorreu entre o primeiro e o segundo Congresso Nacional de Anistia, ocorreram algumas sensíveis mudanças na conjuntura política brasileira.

A primeira delas é fruto das próprias campanhas de anistia, encetadas durante o ano de 1978 e intensificadas nos três primeiros trimestres de 1979: mais de metade dos presos políticos então existentes já foram libertados, voltaram ao Brasil dezenas de exilados, inclusive os líderes de alguns dos principais partidos de esquerda, muito militantes abandonaram a clandestinidade e foram intensificadas as tentativas de apurar alguns casos de mortes e desaparecimentos.

A segunda decorre da retomada das lutas reivindicatórias, por trabalhadores da cidade e do campo e por setores populares, em escala quase nacional. Essas lutas, que têm um marco mais significativo na greve dos metalúrgicos do ABC em maio de 78, ampliam-se e se generalizam por numerosas categorias e várias regiões do País, e, entre vitórias e derrotas parciais, imprimem novas características à vida política nacional dos dois últimos anos. A esses fatos, a Ditadura reage prontamente, e volta todo o brutal peso do seu aparato repressor, ainda inteiramente impune e intacto, contra os movimentos trabalhistas e populares. A dissolução de piquetes, com bombas e cassetetes, a prisão de grevistas, a intervenção nos sindicatos, a destituição de líderes e dirigentes sindicais, o assassinato de operários nas portas das fábricas e nas ruas começam a abrir os olhos dos trabalhadores.

No momento em que os patrões chamam a polícia para dissolver os piquetes, no momento em que o Ministério do Trabalho intervém nos sindicatos em greve, a Ditadura revela seu caráter de classe, seu duplo papel de exploradora econômica e opressora política. Os trabalhadores dos centros industriais mais adiantados do País lutam, agora contra a repressão, forma concreta e imediata de manifestação da Ditadura de classe. E começam a dar, finalmente, os primeiros passos do salto qualitativo há tantas décadas esperados pelos teóricos dos movimentos de massas; a passagem da luta econômica para a luta política, passagem que não é automática nem mecânica, mas que é essencial para pôr em cheque o caráter de classe do regime, vale dizer, não apenas da Ditadura Militar, mas da própria Ditadura Burguesa, do próprio Capitalismo. A luta da sociedade civil contra o Estado de Exceção – que caracterizou o quatriênio 74/78 – começa a ceder lugar, embora de forma ainda imprecisa e mesclada, a uma mudança de qualidade na luta de classes no Brasil.

O II Congresso Nacional de Anistia, que acaba de se realizar em Salvador, de certa forma refletiu e exprime essas novas características conjunturais e as contradições reais em que elas surgem e se desenvolvem.

A composição social do primeiro Congresso, em novembro de 78, ainda era, basicamente, de classes médias: estudantes, profissionais liberais, parlamentares, advogados, médicos, professores universitários, familiares de atingidos pela repressão que, desde 1964 se abatera sobre os partidos e organizações de esquerda. Já o II Congresso mostra uma composição social nitidamente diferente, com o acréscimo considerável de lideranças sindicais, trabalhadores rurais, representantes de associações de bairros, populares em geral.

O II Congresso Nacional de Anistia, que acaba de realizar-se em Salvador, de certa forma refletiu e exprimiu essas novas características conjunturais e as contradições reais em que elas surgem e se desenvolvem.

A composição social do primeiro Congresso, em novembro de 78, ainda era, basicamente, de classes médias: estudantes, profissionais liberais, parlamentares, advogados, médicos, professores universitários, familiares de atingidos pela repressão que, desde 1964, se abatera sobre os partidos e as organizações de esquerda, Já o II Congresso mostra uma composição social nitidamente diferente com o acréscimo considerável de lideranças sindicais, trabalhadores rurais, representantes de associações de bairros, populares em geral.

Também muda a composição política: a própria anistia parcial obtida em agosto permite que o II Congresso conte com a participação, em vários graus de discrição, de militantes e líderes dos diversos partidos, organizações e tendências de esquerda, com nítida supremacia sobre os elementos liberais, apartidários ou de posições de centro, cujo peso for a decisivo nas discussões do I Congresso.

A temática do II Congresso, igualmente, sem deixar de acentuar a especificidade dos movimentos de anistia, desloca-se sensivelmente para aspirações mais ambiciosas, entendendo de maneira mais conseqüente que a libertação dos presos, volta dos exilados, apuração de mortes e desaparecimentos, e fim da LSN, constituem uma forma de lutar contra a repressão, ou seja, de lutar contra a Ditadura. Ao mesmo tempo, diminui o peso – tão flagrante no I Congresso – das denúncias contra as atividades políticas das organizações de esquerda, denúncias praticamente contidas durante 15 anos; única exceção feita à denúncia sistemática da repressão à guerrilha do Araguaia.

Mas, em compensação, aumentam as denúncias sobre a repressão aos movimentos populares e de trabalhadores em luta por suas reivindicações econômicas e sociais, e aparecem as primeiras denúncias sobre a violência cotidiana, a violência contra os negros, contra os posseiros, contra os favelados, contra os índios. Na mesma linha, e diferentemente do I Congresso – positivas porque refletem adequadamente, as diferenças da conjuntura – nem sempre foram perfeitamente compreendidas por alguns participantes ou observadores do próprio Congresso. E essas incomprensões certamente tiveram seus ecos em muitos órgãos de comunicação da imprensa, grande e pequena; (revelando?) a perplexidade diante do fato de que as lutas unitárias podem conter divergências e diversidades, fato normalíssimo nas frentes políticas mas certamente incompreensível para os que carecem de prática efetiva do exercício político.

O acerto e o caráter unitário das resoluções políticas aprovadas no II Congresso – sobejamente provados na aclamação unânime do documento final – terão seu teste definitivo na prática que os movimentos e os militantes da anistia lograrem exercer daqui para a frente. Todas as probabilidades, contudo, são no sentido de que esse teste resulte favorável.

 

* Perseu Abramo é jornalista e representante do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo no CBA-SP