Hip hop — A periferia grita (resenha de Mauro Ventura)
Você pode até não saber o que é hip hop, mas com certeza já esbarrou em algum de seus representantes. Talvez tenha lido que Afro X está preso em Carandiru e teve um filho com Simony. Quem sabe ouviu no rádio alguma música dos Racionais MC’s, grupo que vendeu um milhão de cópias só com o disco “Sobrevivendo no inferno”, de 1997. Ou leu que MV Bill foi acusado de “apologia ao crime” porque, vejam só, mostrou uma criança com arma na mão no videoclipe “Soldado do morro”. Não? Vai dizer que não conhece o Pavilhão 9, que tocou no Rock in Rio 3? No mínimo ouviu falar que Marcelo D2 lançou a coletânea “Hip Hop Rio”. Ou que grupos importantes como o Rappa flertam com o rap.
Pois esse tal de hip hop acaba de ganhar uma bem-cuidada biografia. O recém-lançado Hip hop — A periferia grita (Editora Fundação Perseu Abramo), escrito por três jornalistas de São Paulo, faz um apanhado histórico do movimento e dá voz a alguns de seus principais integrantes.
Para início de conversa, é bom não confundir hip hop com funk. Os hip hoppers consideram os funkeiros alienados, criticam suas músicas despreocupadas, suas letras leves e sua postura descompromissada. Eles preferem letras quilométricas, ásperas, diretas, sem meios-tons ou concessões. Esqueça as metáforas e os duplos sentidos. O que interessa é o engajamento político e a contundência do discurso. É importante passar uma mensagem. Nada de “um tapinha não dói” ou “me chama de cachorra”. O buraco é mais embaixo. “Alcoolismo, vingança, treta, malandragem/Mãe angustiada, filho problemático/Famílias destruídas, fins de semana trágicos”, cantam os Racionais.
Grito de resistência à marginalidade
O rap — estilo musical do hip hop — funciona como um canal de expressão para aquele jovem esquecido pelo poder público. Sem ele, restaria ao garoto silenciar, vingar-se ou desabafar com amigos. “O hip hop é um grito inteligente de resistência à opressão e à marginalidade”, ensinam as autoras, Janaina Rocha, Mirella Domenich e Patrícia Casseano. “É a resposta política e cultural da juventude excluída”, escreve a jornalista Bia Abramo na orelha do livro.
Há quem veja os hip hoppers como documentaristas dos excluídos, cronistas do subúrbio, porta-vozes da periferia. O rap seria uma espécie de antena parabólica da comunidade negra — tanto é verdade que os integrantes do grupo Sistema Negro autodenominam-se repórteres do jornal da vida. “Somos a CNN negra”, disseram os americanos do Public Enemy. “A informação está no rap, não nos jornais”, decretou certa vez o rapper Cascão.
Uma legião de deserdados que passa a ter voz
O hip hop incomoda. Os rappers querem tirar o véu da hipocrisia e sacudir as certezas do senso comum. O Brasil é uma democracia racial? “Nossa raça está morrendo, não me diga que está tudo bem”, devolvem os Racionais. Graças ao hip hop, os jovens da periferia deixaram de ser apenas uma estatística para ganhar voz. Como mostra a coletânea “Rap e educação, rap é educação”, foi pela narrativa das letras de rap que, nos anos 90, “desajustados, favelados, ladrões, meninos de rua, detentos, ex-detentos, toda uma legião de deserdados da cidade mais rica ao sul do Equador deixaram de aparecer apenas como vítima”.
Os hip hoppers orgulham-se de “trabalhar a auto-estima dos excluídos”, “recusar os estereótipos que associam a periferia à criminalidade”, “desconstruir preconceitos”, “romper com a anestesia dos jovens carentes” e “afirmar a negritude”. No livro, as autoras ressaltam essa “constituição de uma identidade negra por meio da música”. Não por acaso, há várias referências à cor nos nomes dos grupos ou dos artistas: APP (Apologia das Pretas Periféricas), 3 Preto, B Negão, Don Negrone, Sistema Negro, Gustavo Black Alien…
Como diz o advogado Celso Fontana no livro: “Os jovens negros ligados ao movimento hip hop representam os quilombolas do ano 2000.”
O livro dá conta ainda das contradições do hip hop, como a relação ambígua que mantém com o mercado. Ao mesmo tempo em que criticam a mídia e tentam conservar uma postura independente, os artistas reconhecem a importância dos meios de comunicação para a popularização do movimento. “Se num primeiro momento o rap disse não, hoje mídia e indústria precisam do rap — e o rap precisa delas”, escrevem as autoras. “Apropriado pela indústria cultural, o rap também se apropria dela para garantir espaço para as denúncias”, reforça a socióloga Maria Eduarda Araújo Guimarães.
O livro traz curiosidades, como a origem do break, aquela dança robótica que compõe o hip hop, ao lado do rap e do grafite. Os primeiros breakers surgiram nas ruas do Bronx nova-iorquino no fim da década de 60 e protestavam contra a Guerra do Vietnã por meio de passos de dança que simulavam os movimentos dos feridos. “Cada movimento do break possui como base o reflexo do corpo debilitado dos soldados norte-americanos ou demonstra a lembrança de um objeto utilizado no confronto com os vietnamitas, como o próprio giro de cabeça”, diz a educadora Elaine Andrade, referindo-se àquele movimento em que o dançarino fica com a cabeça no chão, mantém as pernas para cima e gira o corpo, como uma hélice de helicóptero.
Cena hip hop carioca teve pouco destaque no livro
Mas o livro tem lacunas. A mais grave delas talvez seja a ausência da cena hip hop carioca, em franca expansão. MV Bill, claro, está lá, mas não há referências às meninas do Anfetaminas e do NegaAtivas, nem às rappers Nega Gizza e Ed Whiller. Não há uma linha sobre Ryo Radical Raps, Filhos do Gueto, Veredito do Gueto, Mahal (filho de Luiz Melodia), Buiú da 12, Esquadrão Zona Norte, Ciência Rimática, Shawlin, O Bando, Inumanos, Marechal e Black Alien. Também ficou de fora uma das figuras mais representativas do hip hop carioca, a produtora Elza Cohen, responsável pela principal festa do Rio, a Zoeira, que desde ontem tem endereço novo: a casa L.A.P.A. O mercado editorial ainda está devendo uma obra sobre o assunto.
A favor das autoras é preciso reconhecer que o hip hop paulista está léguas à frente do carioca. No Rio, o mercado funkeiro ocupa um espaço que em São Paulo é do hip hop. “A imagem dos Racionais é uma cara fechada, que reflete a cara de São Paulo. Aqui não é praia, não é festa o tempo todo e, por isso, a música também não é alegre”, diz no livro o produtor musical Milton Neves. O funk se preocuparia mais em divertir, o rap, em conscientizar. “O funk caiu bem no Rio, cidade mais descontraída, misturada, onde as pessoas estão mais próximas”, observa o rapper carioca Xhackal, do grupo 3 Preto — que, apesar do nome, conta ainda com Don Negrone, Mistério, DJ Mangue Boy e o francês Damien Seth. Já o hip hop, que nasceu nos guetos do Brooklyn, aclimatou-se melhor em São Paulo, cidade que traz a miséria na periferia. “Enquanto no Rio o conteúdo, o ritmo, se traduziram num clima e numa música mais dançante, alegre e não necessariamente politizada, em São Paulo o hip hop foi se afirmando como importante discurso político”, escreve Micael Herschmann em seu “O funk e o hip hop invadem a cena”.
Autoras levaram murros durante luta de boxe
Hip hop — A periferia grita traz mais de cem fotos e aborda do pioneiro dançarino de break, Nelson Triunfo, às raras mulheres do hip hop, como as garotas do Visão de Rua. Também têm lugar cativo nas páginas do livro os b.boys (dançarinos de break) e os grafiteiros, que usam o spray para limpar a sujeira visual das ruas. As três autoras estiveram em presídios, praças, bailes, ruas e estações de metrô de São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Fortaleza, Recife e Rio. Certa vez, foram a uma luta de boxe na periferia paulistana, em busca de uma entrevista com Mano Brown. Lá pelas tantas, o boxeador local foi derrubado, o público invadiu o ringue e sobrou para elas, que levaram murros e foram jogadas no chão.
Valeu a pena. O hip hop é hoje um fenômeno tão abrangente que abriga em suas fileiras policiais e presos, muçulmanos e evangélicos, pacifistas e belicistas, negros e brancos. Ele está, por exemplo, nos presídios, onde o ex-traficante Escadinha lançou CD e o detento MC Donal organizou um festival de hip hop. As celas abrigam ainda os grupos 509-E, de MC Dexter e Afro X, e Detentos do Rap, formado por presos da Casa de Detenção de São Paulo. “Éramos viciados em drogas. Hoje somos chapados no hip hop”, diz Daniel Sancy.
O movimento está presente também no documentário “Mano do ABC”, de Tata Amaral e Francisco César Filho. Está ainda nas rádios comunitárias, que ajudaram a tirar o rap da clandestinidade, no prêmio Hutus, que elegeu na última sexta-feira os melhores do rap nacional em 13 categorias, e na moda, onde os rappers criaram um estilo marcado pelos agasalhos, bonés, bermudas largas, camisetas folgadas e tênis. “O hip hop é uma nação que congrega excluídos do mundo inteiro”, resumem as autoras.
Resenha publicada no jornal O Globo de 02/12/2001