Uma vela acesa, frágil, sustentando a vontade da luz contra o cerco da escuridão. Uma vela acesa recortando com luz tênue as grades da cela. Como um murmúrio, uma notícia. É possível definir desse modo o primeiro sinal de que havíamos sobrevivido e já era tempo de mobilizar a sociedade em torno da idéia da Anistia. Um pequeno cartão, desenhado pela mão minuciosa de Mané Cirilo, com um poema curto na contraface:

Uma vela acesa, frágil, sustentando a vontade da luz contra o cerco da escuridão. Uma vela acesa recortando com luz tênue as grades da cela. Como um murmúrio, uma notícia. É possível definir desse modo o primeiro sinal de que havíamos sobrevivido e já era tempo de mobilizar a sociedade em torno da idéia da Anistia. Um pequeno cartão, desenhado pela mão minuciosa de Mané Cirilo, com um poema curto na contraface:

pedrotierra

Cultivarei o chão da manhã,
embora, hoje, eu deva recompor
o corpo de meu irmão feito em pedaços.
Não importa se tarda a colheita de luz.

 

Desenho de Manuel Cirilo Reproduzido em cartão,
trazia no verso os seguintes dizeres:

Presos Políticos – Carandiru – Natal de 1974

iludiu a vigilância do Presídio Romão Gomes e ganhou a rua. Foi somar-se a outras esperanças cultivadas em outros presídios ou na casa dos familiares dos perseguidos políticos dispersas pelo país, dos exilados, alguns deles convertidos em apátridas por decreto do governo militar e tornar-se aos poucos uma realidade política: um clamor.

Em São Paulo nos concentramos na discussão e produção de documentos que buscavam fundamentar as razões da Anistia, de defini-la conceitualmente. De distingui-la do indulto e do perdão. Não desejávamos ser perdoados por nada do que havíamos feito durante as lutas de massa ou a luta armada clandestina contra a ditadura. Para nós, presos e perseguidos políticos, portanto, que não aceitáramos como legítimos julgamentos fundamentados em depoimentos arrancados sob tortura, Anistia não era outra coisa senão a possibilidade de anular os processos e reintegrar os perseguidos à vida política do país. Esse esforço dos presos políticos de São Paulo foi recolhido e publicado por Roberto Martins no livro Anistia Para os Brasileiros.

Libertado em março de 1977, depois de cumprir pena em São Paulo, estive presente em alguns momentos da campanha da Anistia que àquela altura já ganhara um espaço importante na agenda política do país e levara o regime militar a uma posição defensiva. O que se discutia, a rigor, eram os termos de uma Anistia que já se impunha como inevitável. Se seria uma Anistia Ampla Geral e Irrestrita como defendíamos, ou se uma Anistia de calças curtas como acabou acontecendo. Esse caráter restrito que prevaleceu era, na verdade, uma peça importante do quebra-cabeças montado para o recuo organizado que o estamento militar operou, afastando-se da cena política explícita, enquanto cuidava de preservar a incolumidade do sistema repressivo que lhe dera sustentação. Estavam assim dadas as condições para garantir sem maiores solavancos, a transição pelo alto.

Há um momento curioso da campanha, já em 1979, quando percorri algumas capitais do nordeste com um pequeno volume dos Poemas do Povo da Noite, publicados no Brasil graças à abnegação e heroísmo do Fábio, naquela época dirigindo a editorial livramento. Chegamos a Salvador e fomos para a atividade, um recital marcado para a antiga Praça da Forca. Talvez por estarmos pisando o chão dos Orixás, o que ocorreu naquele dia escapa inteiramente aos domínios surrados da razão… Saltamos do ônibus e demos com a praça cercada por um forte aparato militar. Nunca imaginei que a poesia fosse tão poderosa, considerei, com uma ponta de orgulho… Nos concentramos em torno do monumento e deu-se início ao recital. Para minha surpresa um grupo de jovens atores havia feito uma seleção de poemas, para homenagear Pedro Tierra, poeta de origem latino-americana, morto sob tortura pelo regime militar… e lá se foram desfiando no tom dos discursos veementes da época os Poemas do Povo da Noite, aos quais tiveram acesso por uma edição mimeografada que corria de mão em mão entre eles. Senti-me morto e ressuscitado, comovido pela homenagem e temendo frustrar meus entusiasmados porta-vozes por estar prosaicamente vivo, entre eles…

Não atinava, porém, com o misterioso poder de uma poesia capaz de mobilizar tamanho aparato militar. Só mais tarde tomamos conhecimento de que exatamente na noite anterior havia fugido da prisão Teodomiro Romero dos Santos, condenado à morte, que tivera a pena comutada para prisão perpétua… E, para fechar o círculo surreal daquele dia glorioso, a pessoa que me acolheu em sua casa, com a generosidade de sempre, era a mesma que ajudara decisivamente a fuga de Teodomiro, que foi parar na Nunciatura Apostólica antes de se exilar no México.

A poesia andava pelas praças, pelas ruas. Porque o coração das pessoas estava aberto para ouvi-la. Talvez até imaginasse que era capaz de grandes transformações… Em Recife, na bela livraria Livro 7 ou em Fortaleza, na Praça José de Alencar as pessoas se concentraram para ouvir poemas como esta Marcha que compus durante a campanha:

Venho da pátria dos tormentos.
Venho de um tempo de crimes.
Venho das chagas que a noite
lavrou na carne dos homens.

Não pedirei perdão
à corte dos meus carrascos
pelo grito de rebeldia
arrancado do meu sangue,
pelo sonho,
pelo sonho,
pelas armas,
pela marcha do meu povo
contra os muros!

Como se desata o cereal da terra,
levanto meu corpo de trigo
do corpo estendido de Orocílio Martins
sementeira de fúrias e esperanças –,
sangrando nas ruas rebeladas de Minas.

Liberto meu canto de pássaro
da voz impossível dos mortos:
luz acesa no porão da treva,
memória enterrada do povo.

E canto pela boca destroçada
do Comandante Carlos Marighella
dez séculos depois do silêncio;
pela garganta emudecida
de Mário Alves,
grito eterno que anda;

pelos olhos vazados
de Bacuri,
estrelas sangrando na memória;

pelas cabeças cortadas
no vale do Araguaia,
terra de rebelião;

pelo peito metralhado
do Capitão Carlos Lamarca,
granito de sonho enterrado
entre as pedras do sertão;

pelo corpo mutilado
de Manoel Raimundo Soares,
nas águas do Rio Guaíba,
sangue dos ventos do sul;

pelas mãos atadas de Alexandre,
arados de terra livre;
pelo sangue derramado
de Aurora Maria do Nascimento,
promessa de amanhecer.

E me faço boca
de todas as bocas
assassinadas,
canto de todos os cantos
aprisionados,
sonho de todos os sonhos
submergidos
pela mão armada
dos carrascos do meu povo.

Hoje, o Poder se absolve dos seus crimes.
Mantém à sombra dos seus muros
os açoites e as vergastas.
Recolhe sob a manga verde-oliva
as mãos ensangüentadas dos verdugos
e espera…

E as mães aflitas do povo
tecem nos cegos teares da dor
um espesso tecido de agulhas infinitas:

quem responderá pela morte
dos meus filhos?

Quem responderá pelos torturados
até a loucura?

Quem assassinou a esperança
de Frei Tito?

Quem prestará contas ao meu coração
pelo destino dos devorados?

Pelas vidas, pelos sonhos
que a Noite transformou em cruzes?

Hoje, o Poder se absolve dos seus crimes.
Recolhe sob a manga verde-oliva
as mãos ensangüentadas dos verdugos
e espera…

Do ventre fecundo
das filhas do povo,
das cinzas dos ranchos,
da terra queimada,
das marchas, das greves,
das ruas feridas
nascerão seus julgadores!
79

Brasília, julho de 99

 
 
*Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva), poeta, ex-preso político, atualmente membro da Diretoria da Fundação Perseu Abramo.