Mortos e desaparecidos políticos: a vala de Perus

A ditadura militar, implantada por meio do golpe de abril de 1964, desde seu início cometeu atrocidades contra o povo e a nação brasileira.

Criaram-se organismos estatais, sob os moldes da OBAN (Operação Bandeirantes), os chamados DOI -CODI (Destacamento de Operações e Informações de Defesa Interna), que visavam prender e torturar homens e mulheres opositores políticos.

Milhares de pessoas foram presas e torturadas e algumas centenas assassinadas ou desaparecidas. Desde então, os familiares dos mortos e desaparecidos políticos lutam pelo esclarecimento dessas mortes e desaparecimentos, ocorridos durante a ditadura militar.

Quase a metade dos desaparecidos políticos foram seqüestrados e mortos na região do rio Araguaia, onde se desenvolveu um movimento guerrilheiro no período de 1972 a 1974.

Outros ativistas militantes, de outras organizações políticas, foram mortos nas cidades, particularmente no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Em São Paulo, no dia 4 de setembro de 1990, foi aberta a Vala de Perus, localizada no cemitério Dom Bosco, na periferia. A Vala de Perus foi construída pelo Serviço Funerário Municipal, entre 1975 e 1976, para esconder os restos mortais de vítimas do Esquadrão da Morte, de presos políticos torturados e assassinados, e de pessoas pobres consideradas indigentes.

Na Vala de Perus foram encontradas 1.049 (mil e quarenta e nove) ossadas de indigentes, presos políticos e vítimas do Esquadrão da Morte.

De acordo com os registros do cemitério, deveriam estar enterradas nesse local as ossadas de pelo menos seis presos políticos: os irmãos Dênis Casemiro e Dimas Casemiro, Flávio de Carvalho Molina, Francisco José de Oliveira, Frederico Eduardo Mayr e Grenaldo de Jesus da Silva.

A Vala de Perus ficou clandestina por muito tempo e a certeza da impunidade e do desconhecimento científico fizeram com que se acreditasse que ninguém conseguiria, jamais, identificar as ossadas misturadas.

A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos há muitos anos sabia da existência dessa Vala, mas não tinha condições políticas de apurar a respeito. A abertura da Vala de Perus ocorreu graças ao jornalista Caco Barcelos, da Rede Globo de Televisão, que a descobriu, ao fazer pesquisas nos laudos necroscópicos do Instituto de Medicina Legal, sobre violência policial. Na ocasião, a TV Globo solicitou a abertura da Vala ao Serviço Funerário Municipal, a fim de fazer uma reportagem especial. Conclusão: a Vala de Perus foi aberta oficialmente no dia 4 de setembro de 1990.

A prefeita Luíza Erundina criou imediatamente uma Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus, com a participação de familiares dos mortos e desaparecidos e de médicos legistas da Unicamp. A iniciativa da prefeita foi seguida pela abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara Municipal de São Paulo e pela formação da Comissão de Representação Externa de Busca de Desaparecidos Políticos, na Câmara Federal, que posteriormente se transformou na Comissão de Direitos Humanos.

Em decorrência da abertura da Vala de Perus, os familiares também conseguiram entrar nos arquivos policiais que pertenciam ao DOPS, Departamento Estadual de Ordem Política e Social, órgão de repressão política, e lá, por meio de pesquisas, obtiveram documentos, contendo provas bastante contundentes contra alguns médicos legistas que, em seus laudos, omitiram as claras e evidentes marcas de tortura nos corpos dos militantes mortos.

Esses dados sobre os médicos foram encaminhados ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo e hoje integram processos, que ainda estão tramitando, instaurados para apurar as responsabilidades dos médicos legistas que assinaram laudos falsos de presos políticos mortos.

Um desses médicos, Pérsio Carneiro, teve seu diploma cassado.

Conforme convênio celebrado entre a Prefeitura de São Paulo, a Unicamp e o Governo do Estado, as ossadas da Vala de Perus foram entregues a peritos para serem identificadas. Enquanto o governo municipal estava sob o comando da prefeita Luiza Erundina, a investigação na Unicamp prosseguiu normalmente, tendo sido identificadas as ossadas de Dênis Casemiro e de Frederico Eduardo Mayr.

A partir de 1993, quando Paulo Maluf assumiu a Prefeitura de São Paulo, o Departamento de Medicina Legal da Unicamp paralisou o trabalho investigativo, quebrando o compromisso firmado no sentido de realizar as investigações até as últimas conseqüências. Apesar disso, há comentários, feitos pelos próprios funcionários, de que já estariam identificados os restos mortais de Flávio de Carvalho Molina, Francisco José de Oliveira e Dimas Casemiro.

A ossada de Maria Lúcia Petit, que se encontrava na Unicamp, foi identificada em 29 de abril de 1996, em razão de denúncias feitas pelo jornal O Globo em série de reportagens sobre a guerrilha do Araguaia.

Numa dessas reportagens, um ex-torturador entregou uma foto do cadáver de Maria Lúcia, em que apareciam destacados suas vestimentas e um cinto. Com essa foto, ficou evidente que essas peças eram as que acompanhavam uma das ossadas da Vala de Perus. E assim foram identificados os restos mortais de Maria Lúcia Petit.

Até então, o médico legista Badan Palhares, numa atitude preconceituosa, dizia que aquela ossada "não era de uma guerrilheira, mas sim de uma prostituta". Isso, porque a moça teria "um dente tratado e só uma prostituta teria possibilidade de fazer algo assim".

A guerrilheira Maria Lúcia, na verdade, tinha um dente tratado.

Seu dentista foi até a Unicamp e reconheceu o dente, como sendo de Maria Lúcia, e o tratamento, como de sua autoria.

Em 1998, a Unicamp encaminhou um relatório conclusivo das ossadas de Perus para as autoridades. Segundo os representantes da Unicamp, "do ponto de vista científico, o trabalho da Universidade está encerrado".

PROPOSTAS

* Garantir que as investigações sobre as ossadas da Vala de Perus sejam concluídas após o estudo detalhado de todas elas;

* Requerer que a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania acompanhe ações judiciais listadas a seguir, de autoria de familiares de desaparecidos, enviando solicitações sobre o andamento dos processos, bem como se manifestando no sentido de que o Governo Brasileiro reconheça a Corte Interamericana:

a) Ação na justiça Federal, iniciada em 1982, e cujo primeiro julgamento foi no sentido de decretar a extinção da ação (carência do direito de ação), face à Lei da Anistia, a qual, segundo o entendimento do juiz, teria resolvido o problema dos mortos e desaparecidos políticos. Dessa decisão, os familiares recorreram ao tribunal Federal de Recursos, que determinou o prosseguimento da ação. Em 1991, o processo voltou à justiça Federal para prosseguimento e ainda em 1998 está sendo aguardado o julgamento;

b) Pedido feito pelos familiares, aceito e processado junto à Comissão de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos). já foram feitas audiências, em que o representante do Governo Brasileiro justificou com a Lei da Anistia o não-esclarecimento por parte do Estado. Em 1998, os familiares ainda aguardam o parecer da Comissão de Direitos Humanos da OEA.

* Encaminhar, à Comissão dos Desaparecidos Políticos da Câmara Federal, solicitação para que os trabalhos prossigam, conforme os itens da Lei 9.140/95 que garantem a localização e o resgate dos restos mortais;

* Solicitar, à Comissão dos Desaparecidos Políticos, informações a respeito das ossadas de guerrilheiros do Araguaia, que estão sendo submetidas a exames de DNA na Universidade de Brasília.

* Texto extraído do Plano de Direitos Humanos da Comissão Extraordinária de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo e Fórum Municipal de Entidades de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, pag. 34-6, 1998.

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