Ensaio: Por um modelo educativo de profissionalização sustentável
O capitalismo de nosso tempo está operando mutações decisivas. Tamanha é a dimensão de tais mudanças, que se pode dizer que ele entrou em uma nova era. A passagem de um capitalismo industrial e nacional a uma dominação do capitalismo financeiro e transnacional modifica profundamente a dinâmica do conjunto de nossas economias e sociedades.
A desregulação generalizada dos mercados operada nestes últimos vinte anos transtornou o ambiente político do capitalismo. A revolução das tecnologias de informação transformou suas bases técnicas. Assim, o caminho foi aberto para um domínio crescente da esfera financeira sobre a economia, o que vai controlar também, indiretamente, as relações sociais.
As exigências das finanças se impõem progressivamente a todos os setores da produção. Estas são, entre outras, a obsessão da liquidez e a rejeição de qualquer regulação exterior, a aceleração das trocas, a ditadura do rendimento para o acionista.
Hoje, como nas etapas anteriores de sua história, o desenvolvimento do capitalismo se estabelece a partir do alargamento de seus mercados. Em um mundo onde uma parte da humanidade cresce incessantemente, contribuindo com a produção, mas excluída da possibilidade do consumo, o capitalismo desenvolve-se principalmente mediante a mercantilização de novos setores da atividade humana. Esta é a razão da insistência dos liberais para obter, em todas as partes do planeta, a privatização dos serviços públicos e a abertura da educação e da saúde à livre concorrência.
Mas a aplicação das exigências da nova era do capitalismo em um setor como o da educação faz com que surjam novas contradições. Ela ameaça a própria construção das sociedades democráticas das nações, negando às coletividades nacionais o domínio do ensino de sua juventude. Ela contradiz o direito à qualificação construído no pós-guerra pelo desenvolvimento de serviços públicos, quando a educação representa, mais que nunca, um fator determinante de integração e de evolução profissional. Ela entra igualmente em conflito com a necessidade crescente de formação, característica de nossas economias da tecnologia e do conhecimento. Formar os futuros trabalhadores em competências que caem em desuso cada vez mais rápido é, na realidade, comprometer as bases futuras do progresso econômico e social.
Encontramos, então, na área educativa, o caráter predador do crescimento na nova era do capitalismo. A educação é, assim, uma das frentes de resistência decisivas diante da desregulamentação e da mercantilização generalizada dessa nova era do capitalismo, sobretudo porque os sistemas públicos educativos carregam também sementes da contestação e da transformação da ordem estabelecida.
Os perigos da mercantilização
A mercantilização da educação está fortemente impulsionada por algumas instituições em nível internacional, dentre as quais a Organização Mundial do Comércio ocupa o primeiro lugar. O Acordo Geral sobre o Comércio dos Serviços (AGCS), que faz parte da agenda das negociações da OMC, na realidade inclui todos os serviços, com exceção daqueles “fornecidos no exercício do poder governamentall”, isto é, “nem sobre uma base comercial, nem em concorrência com um ou diversos provedores de serviçoss”. A existência de estabelecimentos privados, propondo formações concorrentes desses serviços oferecidos pelos estabelecimentos públicos, faz da educação um serviço comercial.
O “livre comércio dos serviçoss” aplicado à educação significaria concretamente o direito para estabelecimentos privados estrangeiros de se implantarem em um país, ou de fornecer o ensino a distância e de exigir a mesma certificação para as formações que eles propõem que a conferida às formações oriundas dos estabelecimentos públicos.
Desta maneira, o Banco Mundial considera que o ensino superior é um bem privado e que por conseqüência sua organização ótima deveria ser obtida pelo mercado que relaciona demandas privadas (indivíduos, empresas) com ofertas que emanam de operadores privados e públicos. Logo, para o Banco Mundial, uma orientação dirigida ao mercado implica:
>• rentabilidade dos produtos de formação (imposição de pagamento da formação escolar e venda dos produtos de pesquisa e de formação às empresas);
>• intervenção de operadores privados concorrentes das universidades públicas;
>• descentralização regional e autonomia dos estabelecimentos.
Apenas alguns países, entre os quais os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, se aproximam de um tal modelo educativo. Mas, em todos os outros, os sistemas públicos de formação já estão em concorrência com dispositivos privados de todo tipo.
Na França, a certificação de diplomas é monopólio público, o que constitui uma garantia fundamental para fazer prevalecer o interesse geral diante das lógicas de curto prazo dos interesses privados que investem na área educativa. Constata-se lá, ao contrário, que o próprio serviço público é convidado a integrar a lógica mercantilista. Os estabelecimentos públicos, particularmente no ensino superior, seriam levados a adotar a lógica e o funcionamento de uma empresa. Eles se encontram em situação de concorrência, obrigados a procurar sempre mais recursos próprios, geralmente junto a operadores privados.
Nesta lógica, os estabelecimentos mais prestigiados tenderiam a captar mais financiamentos privados, a atrair os melhores pesquisadores, os melhores professores, enquanto os estabelecimentos menos prestigiados, situados em zonas geográficas menos centrais, transformar-se-iam em estabelecimentos para onde são relegados os alunos em situação de fracasso escolar.
Essa gestão dita empresarial dos estabelecimentos escolares e universitários traz certamente conseqüências para o estatuto e a gestão do pessoal de ensino e dos demais funcionários (maior precariedade, contratação de suplentes e de funcionários temporários, salários individualizados…).
A tendência à autonomia destes estabelecimentos somente pode ter valor desprezando-se todo esforço de regulamentação democrática. Os estudantes tendem a ser considerados como clientes que devem “comprarr” sua formação. O que implica, no mundo inteiro, uma multiplicação de medidas que visam à obrigatoriedade dos estudantes pagarem uma grande parte do custo de sua formação, assim como o retorno intenso de seleção para o ingresso nas universidades, onde ela não existia.
Uma outra dimensão preocupante dessa mercantilização é o controle da produção das ferramentas pedagógicas por empresas transnacionais. Uma política pública de educação não pode ser concebida sem um operador público que garanta ao mesmo tempo a conformidade dos meios pedagógicos com o espírito da política pública em execução, a independência e a perpetuidade de uma busca pedagógica inovadora, assim como condições de acesso democráticas a essas produções.
Estas evoluções levariam a uma modificação radical: passamos gradualmente da educação, direito garantido e transmitido gratuitamente em herança a cada um pelo Estado, a um investimento pessoal, repousando na responsabilidade individual. Como em muitos outros setores (a assistência social contra a doença, as pensões), trata-se de se substituir um sistema de divisão coletiva e solidária por um sistema de capitalização individual, necessariamente desigual. Esta concepção está na origem das reformas dos sistemas de ajuda financeira para os estudantes em alguns países, notadamente a substituição das bolsas estatais por empréstimos bancários.
Esse exemplo mostra que a introdução da lógica comercial na educação, mesmo fortemente controlada, ameaça as finalidades progressistas dos sistemas educativos.
Rejeitar a comercialização da educação é, então, uma necessidade para continuar defendendo a democratização dos estudos e a elevação de nível geral de formação. O imperativo de rentabilidade conduz, de fato, ao abandono da parte mais prejudicada da juventude e conduz também à concentração da formação em setores estreitos que respondem seja às necessidades imediatas seja a públicos capazes de investir massivamente na sua formação.
Essa é também uma necessidade do ponto de vista pedagógico. A moda do e-learning a exemplifica de um modo muito significativo. A ilusão de que o ensino a distância por meio de fornecedores de serviços educativos – para os quais se trata de um mercado potencial gigantesco – seria a solução, resolvendo o problema do acesso ao saber e permitindo reduzir os sistemas educativos até uma porção mínima, é astutamente desenvolvida pelos partidários da mercantilização da educação. É considerar o conhecimento somente como uma informação, que é preciso adquirir, se necessário no âmbito de uma troca mercantil, calando a dimensão sumamente social de qualquer aprendizagem, o papel de guia do professor e da equipe educativa, e mais geralmente das múltiplas funções socializantes que realiza o ato pedagógico educativo.
De forma geral, é inconcebível que uma pedagogia realmente inovadora, que tenha como ambição uma emancipação, ao mesmo tempo cultural, social e cidadã do aluno, possa se construir na ausência de uma coerência assegurada pelo poder público.
Rejeitar a mercantilização da educação é, finalmente, rejeitar novas desigualdades entre países. Enquanto uma parte da população mundial ainda não tem acesso à educação fundamental, os esforços educativos dos países do Sul são captados por certos países do Norte que aproveitam sua posição dominante. Isto se traduz em um verdadeiro roubo de cérebros, que consiste para os países desenvolvidos na prática de uma imigração seletiva, fazendo imigrar pessoas altamente qualificadas formadas nos países do Sul a custas de sacrifícios consideráveis. Roubo a curto prazo, este método só pode agravar o desequilíbrio do desenvolvimento e debilita ainda mais a estabilidade e a paz internacionais.
Não é possível, então, acomodar-se frente à mercantilização da educação ou acordar com ela. É necessário, ao contrário, opor-lhe uma alternativa.
Profissionalização sustentável
Na batalha mundial que se anuncia na área da educação, os progressistas devem tentar fazer uma lista de todos os pontos de apoio e unificar as propostas que permitam oferecer um contramodelo ao liberalismo. A dificuldade é grande porque nesta área, como em outras, o liberalismo aproveita-se integralmente das diferenças de nível de desenvolvimento econômico dos países. Para contribuir com a elaboração de uma alternativa educativa à mercantilização da educação em nível internacional, os progressistas devem propor o modelo da profissionalização sustentável.
A noção de profissionalização sustentável deve destacar-se como a resposta a um duplo imperativo do progresso: o acompanhamento da rápida evolução tecnológica e uma garantia social para o trabalhador. São dois movimentos interligados, porque a elevação do nível de qualificação e a busca do ritmo do progresso tecnológico tornaram-se há muito indissociáveis. Atualmente, as profissões têm se transformado em verdadeiras “ciências práticass” nos sistemas produtivos tecnicamente avançados. Elas exigem uma elevação do nível de conhecimento das populações, o que é um objetivo histórico do humanismo progressista.
Esta constatação abre um amplo espaço de convergência social, não somente entre sindicatos de trabalhadores, associações de pais e os sindicatos profissionais do pessoal de educação, mas também com os ramos patronais dos setores nos quais se impõe o recurso aos conhecimentos e às técnicas avançadas. Esta convergência da mão-de-obra é uma poderosa base de resistência e de ofensiva frente às exigências imediatistas dos partidários da mercantilização.
A tomada de consciência de que a formação se transformou em um elemento-chave da competitividade econômica é muito forte na Europa. Ela se traduz na meta estabelecida pelas instâncias da União Européia sobre a “formação em todas as etapas da vidaa”. Mas este novo espaço, imediata e energicamente, eles querem transformá-lo em um terreno privilegiado da mercantilização da educação. A educação contínua constitui-se, de fato, em um setor de intervenção mais fácil para os sistemas privados que uma formação inicial dominada pelo princípio de gratuidade.
Os liberais defendem, desta forma, um sistema de capitalização individual do direito à formação, além de uma base comum inicial, adquirida na escola – sob a forma de uma conta-poupança-educação, alimentada pelo próprio assalariado. A isto, contrapomos um sistema de distribuição garantida por um dispositivo público de requalificação permanente do assalariado, garantido como um direito individual, que constitui o único meio de garantir o sucesso desta grande obra de progresso econômico e social.
Trata-se de assegurar, pelo conteúdo dos diplomas nacionais e das formações que conduzem a estes, a possibilidade para cada indivíduo de se inserir profissionalmente em boas condições e de prosseguir ou retomar posteriormente estudos para elevá-lo ao nível de qualificação superior.
Este direito está hoje ameaçado por uma gestão de recursos humanos baseada na referência às competências ou pela “gestão das competênciass” que, segundo alguns setores patronais, deve, supostamente, responder melhor à necessidade de maior responsabilização do assalariado em suas atividades de trabalho.
Como qualquer mercadoria, o trabalho contém um valor de uso e um valor de troca. O valor de uso está conectado à formação adquirida pelo assalariado, quer dizer, os conhecimentos e as habilidades que ele domina e emprega em sua atividade. O valor de troca é o resultado de uma relação social entre aquele que vende sua força de trabalho e quem a compra. Nessa relação de forças, são as qualificações e os diplomas nacionais que garantem coletivamente o valor de troca do trabalho assalariado. Substituir as qualificações pelas competências é rejeitar o ponto de referência que é a qualificação para fixar o valor em salário do trabalho.
Em cada país, poderosas organizações patronais exigem a possibilidade de fabricar e estender suas próprias certificações de competência, e de fazê-las reconhecidas da mesma maneira que os diplomas nacionais, como os títulos de reconhecimento das qualificações. Isto deixa a porta totalmente aberta à mercantilização dos títulos profissionais.
Tal evolução implicaria também uma degradação do valor de uso do trabalho por uma diminuição geral do nível de formação. As competências são habilidades limitadas, rapidamente ultrapassadas pela incessante evolução técnica. Jogar fora o trabalhador junto com a máquina é um desastre social e humano, é também se privar de um crescimento econômico sustentável a longo prazo.
A profissionalização sustentável é, desta maneira, um modelo que corresponde ao interesse geral. Assim, é normal que o Estado a tenha sob sua responsabilidade. Exercendo o monopólio dos diplomas e títulos, o Estado assegura a boa “moedaa” que é o diploma. Isto é uma garantia de liberdade para o assalariado que não fica preso a um emprego ou a uma empresa, e pode negociar sua qualificação no mercado do trabalho. Isto é uma garantia de confiabilidade para o empregador que conhece, assim, as qualificações e as competências do empregado que contrata. É portanto legítimo e necessário que o patronato não possa fabricar sua própria “moedaa” em matéria de diplomas. Exigir o inverso do Estado seria da mesma ordem que requerer de um Banco Central a proteção de dinheiro falso.
Protegendo o princípio de gratuidade da educação e da formação contra a mercantilização dos conhecimentos, o da repartição contra a capitalização, o do sistema de qualificações e de diplomas nacionais contra os certificados de competências de empresas, o modelo de profissionalização sustentável se inscreve na continuidade de mais de um século de lutas sociais para a qualificação e a emancipação do trabalho assalariado e representa uma perspectiva determinante na construção de uma alternativa à nova era do capitalismo em todos os países, qualquer que seja o nível de desenvolvimento de seu sistema educativo.
O co-desenvolvimento educativo
Frente ao que está em jogo com a globalização da educação e o desenvolvimento desigual é imperativo reagir com uma cooperação educativa mundial.
As ajudas econômica e ao desenvolvimento devem ser acompanhadas de uma ajuda ao desenvolvimento da escolarização e dos sistemas educativos. Por que não se imaginar um fundo de ajuda mundial para o desenvolvimento educacional, financiado pelos países ricos, e servindo para ajudar os países pobres que investem em seu sistema educativo? Por que não se imaginar critérios de convergência mundiais em matéria de escolarização e de acesso às qualificações que condicionem a ajuda ao desenvolvimento a esforços nesta área?
Tal orientação se opõe à política seguida teimosamente pelo FMI e pelo Banco Mundial que leva à redução e à privatização dos serviços públicos de educação, em primeiro lugar nos países economicamente fracos. Ela é ilusória sem a realização de uma nova ordem mundial econômica, que dê aos países do Sul os meios de investir em educação.
A internet e a multimídia são também ferramentas a serviço do co-desenvolvimento, sob a condição de rejeitar com determinação seu conceito comercial. Elas fornecem uma oportunidade sem precedentes de compartilhar conteúdos e práticas educativas.
Conclusão
Os sistemas educativos têm um papel central no plano social, nacional e democrático, na construção das sociedades modernas. É por isso que eles devem exercer uma resistência particularmente forte à mercantilização da educação. Sobretudo porque eles dispõem de meios poderosos e concretos de atração, pela gratuidade, pela imensa quantidade de seus usuários, com os quais o setor privado é incapaz, de imediato, de concorrer devido ao aperfeiçoamento constante de suas técnicas educativas.
A batalha contra a mercantilização da educação pode ser ganha. Mas devemos, para isso, trazer uma alternativa positiva que responda às novas necessidades de formação de nosso tempo. O exemplo francês mostra que não basta massificar o acesso à educação para garantir sua democratização, embora esta seja uma condição indispensável que mobiliza uma forte vontade política. O acesso das crianças dos setores populares a formações qualificativas de altos níveis procede inevitavelmente de uma vontade política assumida e posta em prática pelo poder público. Caso contrário, é grande o risco de ver o aumento das desigualdades e de se instaurar um compartilhamento mais ilusório, que concederia ao setor privado as formações mais rentáveis e prestigiosas, reservando ao setor público a responsabilidade da educação de base, submetendo-o, ao mesmo tempo, à lógica mercantil.
A profissionalização sustentável constitui esta alternativa. Ela, de fato, responde ao desenvolvimento necessário das forças educativas, ao mesmo tempo que permite um crescimento econômico respeitoso dos direitos e do futuro dos trabalhadores. Consolidada com um estatuto social para a juventude, ela pode satisfazer a reivindicação progressista da democratização da educação e de toda a sociedade. O conceito de profissionalização sustentável cristaliza todos os desafios que motivam nossa resistência à mercantilização da educação. É por isso que propomos a profissionalização sustentável como lema do movimento internacional de luta contra a globalização liberal.
*Jean-Luc Melenchon foi ministro do Ensino Profissional da República Francesa