Por Vasconcelo Quadros

Um perfil da luta armada
Livro traz levantamento de organizações e partidos que resistiram à ditadura

SÃO PAULO – O livro Dos filhos deste solo, de autoria do deputado Nilmário Miranda (PT-MG) e do jornalista Carlos Tibúrcio (Boitempo Editorial e Editora Fundação Perseu Abramo, 650 páginas), é a primeira publicação de referência histórica dos anos de chumbo a fornecer um perfil completo dos partidos e organizações de esquerda que optaram pela luta armada para combater a ditadura militar instalada em 1964. Também mostra o número de ativistas e dirigentes políticos (293) assassinados e as 11 organizações a que pertenciam. O total de mortos apontado no livro, incluindo os que não pertenciam a organizações, morreram no exterior ou se suicidaram chega a 424 casos.
 

O levantamento tem como base os três anos de trabalho da Comissão Especial, criada pela Lei 9.140 (1995-1998), que analisou 364 casos de presos políticos mortos ou desaparecidos entre setembro de 1961 e agosto de 1979, período de vigência da anistia. Desses, 280 – 132 listados na época como desaparecidos – foram oficialmente reconhecidos como mortos e suas famílias, indenizadas.

Tabu – Isso equivale a dizer que o governo brasileiro, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, reconheceu oficialmente que o Estado, através dos militares e dos órgãos policiais, prendeu, seqüestrou, torturou, matou e forçou o sumiço de ativistas que confrontaram o sistema – um velho tabu, que até então as Forças Armadas se recusavam a tocar. O reconhecimento é também uma reparação moral à memória de ativistas que, certos ou errados, pegaram em armas para defender um ideal e combater o arbítrio.

Das 11 organizações envolvidas na luta armada, a Ação Libertadora Nacional (ALN) e o Movimento de Libertação Popular (Molipo), que atuavam numa faixa idêntica, foram as mais atingidas pela repressão. Juntas, tiveram 72 ativistas mortos, dos quais quatro foram justiçados por decisões internas e outros quatro faleceram em acidente.

Seqüestro – Dissidência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a ALN era intimamente ligada a Carlos Marighella, que, com o lema "a ação faz a vanguarda", tentou disseminar a guerrilha urbana entre os anos de 1968 e 1973. A mais famosa ação da ALN foi a participação no seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, no Rio, com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).

No dia 4 de novembro de 1969, a ALN perdia seu comandante e um dos mais expressivos líderes da guerrilha: atraído para uma emboscada na Alameda Casa Branca, nos Jardins, em São Paulo, Marighella foi cercado e executado à queima-roupa com quatro tiros. A ALN permaneceria combatendo até 1975.

Pela ordem de baixas, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) foi a segunda organização mais reprimida: 68 militantes foram assassinados, 58 deles na Guerrilha do Araguaia. Do PC do B saíram ainda outras duas organizações, o Partido Comunista Revolucionário (PCR), que tinha suas bases no Nordeste, e o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), cada um deles com quatro baixas, incluídas entre os 68 mortos.

Guerrilha rural – O PC do B acreditava que o palco da guerrilha seria o meio rural, concentrou sua base de treinamento na região do Rio Araguaia, no Sul do Pará, e praticamente desprezou a luta urbana. Acabou sofrendo uma implacável caçada por parte das forças de repressão, que cercou a região com 20 mil homens.

Um dos poucos que escaparam foi Ângelo Arroyo, que, no fim de 1976, seria assassinado, com outros dois dirigentes de peso do partido, Pedro Pomar e João Baptista Franco Drumond, durante uma reunião do comitê central. O massacre, no Bairro da Lapa, Zona Oeste de São Paulo, ficou conhecido como a Chacina da Lapa.

A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), fundada pelo ex-capitão Carlos Lamarca – que depois passaria para o MR-8 -, perdeu 37 ativistas, dos quais dois pertenciam ao Comando de Libertação Nacional (Colina).

Ela surgiu em 1968 como uma fusão de dissidentes de outras organizações, tentou implantar um foco de guerrilha e de treinamento no Vale do Ribeira, em São Paulo, e depois participaria do seqüestro de três diplomatas – do Japão, Alemanha e Suíça -, que seriam devolvidos mediante a libertação de presos políticos.

Herzog – O PCB perdeu 38 militantes e sofreu um duro golpe com o desmantelamento, pela repressão, do aparelho sindical que mantinha sob seu controle. Os casos mais famosos de assassinato nos porões da ditadura foram os do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976. Essas duas mortes desencadearam grandes manifestações contra a tortura e forçaram o regime a recuar. O PCBR, que surgiu como uma corrente revolucionária no Rio e, em 1968, assumiu a condição de partido clandestino, teve 16 ativistas assassinados.

Originado de uma dissidência do PCB, o MR-8 perdeu 15 ativistas. Foi de seus membros a idéia do primeiro seqüestro político no Brasil – o do embaixador americano -, planejado e executado com a ALN, que abriria caminho para a libertação de dezenas de presos políticos, trocados por autoridades e depois banidos. Quando Lamarca morreu, em setembro de 1971, depois de uma implacável perseguição pelos sertões da Bahia, pertencia aos quadros do MR-8.

Adhemar – A outra organização que amargou grande número de perdas foi a Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), fundada em 1969 como uma fusão da VPR e da Colina. A mais atrevida ação da VAR-Palmares, que teve 17 ativistas assassinados, foi o assalto à residência da secretária e suposta amante do ex-governador paulista Adhemar de Barros, Ana Capriglione. Foi a mais rentável ação da guerrilha: o cofre levado pelos guerrilheiros tinha US$ 2,5 milhões (em valores da época), dinheiro que teria origem na corrupção.

O Movimento Nacional Revolucionário (MRN), estruturado no Uruguai durante o exílio do ex-governador Leonel Brizola, teve 10 ativistas assassinados. Era formado por militantes que já tinham lutado pelas reformas de base antes de 1964 e, mais tarde, por sargentos, cabos – entre eles o maior traidor da guerrilha, o cabo Anselmo José dos Santos – e marinheiros excluídos pelas Forças Armadas.

Liderado por Brizola, o MNR tentou, sem sucesso, montar três focos de guerrilha no país, um deles na Serra de Caparaó, entre Minas Gerais e Espírito Santo. Em 1967, depois de sucessivas frustrações, o MNR registrava várias baixas.

AP – A Ação Popular (AP), resultado do movimento iniciado em 1963 pela Juventude Universitária Católica (JUC), perdeu 10 militantes. Sua direção tinha duas vertentes: uma estudantil católica, liderada por Herbert de Souza, o Betinho, e outra protestante, dirigida pelo ex-deputado Paulo Stuart Wright, irmão do pastor protestante Jaime Wright, um dos organizadores do livro Brasil nunca mais.

Das outras organizações que integravam a linha de frente da guerrilha, a Política Operária (Polop) – que englobava também o Partido Operário Comunista (POC), gerando outras organizações nas quais os autores do livro militaram – teve sete ativistas mortos; e o Partido Operário Revolucionário Trotskista (Port), que existia desde 1953, perdeu três integrantes.

Autor-deputado quer ampliar lista
VASCONCELO QUADROS

SÃO PAULO – O deputado Nilmário Miranda encaminhou ao ministro da Justiça, José Carlos Dias, uma minuta que propõe a modificação da Lei 9.140, para ampliar a lista de vítimas da repressão a serem beneficiadas com o reconhecimento das mortes e indenização.

Segundo ele, já há consenso entre parentes de presos políticos desaparecidos sobre quatro pontos: analisar todos os requerimentos apresentados a partir de 15 de maio de 1996 – data em que se extinguiu o prazo para reivindicar o reconhecimento -, reavaliar as mortes ocorridas depois de 15 de agosto de 1979, incluir as pessoas que morreram nas ruas, durante passeatas e greves, e contemplar os ativistas que, em função dos confrontos da época, acabaram se matando.

Justiçamento – "Um quinto ponto, que eu defendo, mas não há consenso, é a inclusão de todas as mortes ocorridas dentro do quadro de violência política", diz o deputado. Nesse caso, poderiam ser contemplados inclusive os ativistas políticos assassinados pelas próprias organizações de esquerda nos processos de justiçamentos. Nilmário Miranda acha que, com a nova minuta, a comissão poderia analisar outros 80 casos, dos quais pelo menos 50 teriam amplas chances de ser reconhecidos e suas famílias, indenizadas.

A Comissão Especial, que encerrou seu trabalho em 1998, utilizou o critério de que passava a ser de responsabilidade do Estado a morte ou o sumiço do militante político nos porões da ditadura, nas delegacias ou em "dependências assemelhadas", cuja definição virou a grande polêmica entre os integrantes do grupo.

Por este critério, o Estado passou a assumir a responsabilidade pelas execuções ocorridas fora das dependências policiais ou militares. Foram então incluídos dezenas de casos, entre os quais os de dois Carlos (Marighella e Lamarca), cujo responsabilidade pelas mortes os militares sempre se recusaram a reconhecer, alegando que ambos foram mortos em confrontos fora das dependências policiais. Os dois foram executados, sem chances de defesa.

Rejeições – O livro Dos filhos deste solo é uma nova versão de outras duas publicações – o Brasil nunca mais e o Dossiê dos presos políticos e desaparecidos a partir de 64 -, mas ainda está distante de representar uma pesquisa definitiva sobre o universo de vítimas da ditadura. Além da comissão ter trabalhado com tempo limitado, mais de uma centena de casos acabaram sendo rejeitados e, o principal, não há informações que possam levar aos restos mortais de outras dezenas de desaparecidos.

Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio explicam, no entanto, que em todos os levantamentos já realizados verificou-se uma deliberada decisão dos órgãos da repressão de sonegar dados e informações. Polícia Federal, os serviços secretos das PMs – os chamados P-2 -, o Centro de Informações do Exército (Ciex), Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) se recusam a colaborar.

Os autores dedicam também um capítulo inteiro às mortes dos sem-partido, brasileiros que não tinham nenhum vínculo com organizações de esquerda, mas que foram mortos pela ditadura militar. Foram mais de 100 pessoas, vítima do estado político e policial da época ou que foram simplesmente confundidas com suspeitos de subversão. Estes poderão ser analisados se a lei for ampliada.

Herança – O livro também chama a atenção para a herança deixada pelo arbítrio e que faz parte da cultura das polícias de hoje: permanecem, contra presos comuns, tortura, desaparecimentos forçados e uma concepção militarizada, especialmente por parte da Polícia Militar, pressupondo que o controle da delinqüência é uma guerra, cujo objetivo é aniquilar o inimigo.

Com essa mentalidade, segundo o livro, os policiais que atiram primeiro ou conseguem matar se destacam mais e chegam a ganhar prêmios das corporações.

Jornal do Brasil – editoria Brasil, domingo, 24/10/99.