A conquista de uma anistia ampla não costuma ser, entre nós, (que me perdoe o "velho Aurélio") um "convite oficial ao esquecimento". E, muito menos, "um gesto de clemência". Vem sendo, ao contrário, uma aspiração sempre renovada do nosso povo, na seqüência de suas lutas e protestos frente a infrações constantes ao estado de direito, a regimes de exceção sucessivos e aos desníveis chocantes e crescentes de nossa sociedade.

Não por acaso, em nosso século, são escassos os exemplos de anistia geral. Eles só chegam, aliás, a concretizar-se sob a pressão de crises excepcionais. Como em 1930, com a queda das velhas oligarquias; em 1945, à aurora de uma época nova para o mundo, com a derrota político-militar do nazi-fascismo; e em 1979, no ápice da crise geral da ditadura militar.

Mesmo assim, seus efeitos mostram marcas flagrantes de intolerância e unilateralidade. Em 1945, beneficiam de imediato os participantes do "putsch" integralista de maio de 1938. Já os envolvidos, direta ou indiretamente, nos movimentos populares de 1935, só voltariam aos seus postos 60 anos mais tarde, em 1990-1992; e já, aliás, sob as benesses da nova Carta de 88. Após agosto de 1979, aquinhoam-se e promovem-se os mentores e torturadores do DOI-CODI. Só 20 anos depois, no entanto, iriam surgir as primeiras respostas, ainda que parciais, às denúncias e angústias das famílias dos "desaparecidos".

Como agravante, os regimes de força sucedem-se, eles também, a curto prazo. Na década de 30, um terror oficial mascarado abre espaços ao "Estado Novo"; a partir de 1945, toda uma caravana de tentativas armadas frustradas (1954, 58, 60-61) prepara, mesmo assim, o golpe de abril de 1964; dois anos apenas depois de agosto de 79, vem a tentativa de massacre popular na festa cívica de 1º de maio, no Rio Centro. Em síntese, um esboço de retrato da nossa época: tão apenas entre 1920 e 1985 – dois terços de nosso século – nada menos que 44 anos de ditaduras militares e civis.

E não é tudo. Entre uma e outra decretação de anistia, recorre-se a um pretenso modelo de democracia – comprimida, como numa camisa-de-força, por medo do povo. Particularmente na bi-gestão presente, sob uma dívida social sempre mais alta, a recusa às reformas democráticas maduras, a entrega ao capital externo do patrimônio nacional, a postura passiva ante a pressão predadora da globalização. E a anulação de conquistas sociais anteriores.

Esta, a folha corrida das classes dominantes, em nossa história recente. No caso da anistia de 1979 – que foi sem dúvida uma conquista da luta constante e abnegada do povo brasileiro – têm-se mais uma vez, uma amostra clara de seu zelo cego pelos privilégios, e de sua intolerância tradicional.

Resta recolher, com humildade, as lições antes ignoradas, olhar de frente os novos desafios, opor-lhes a resposta de uma alternativa clara e viável, que só pode vir do povo e de sua capacidade criadora; da unidade, sob um programa comum, das forças interessadas numa sociedade dotada de liberdade e de justiça. Ao impulso, portanto, de uma democracia viva – expressa numa cidadania inovadora e numa sociedade civil voltada para a crítica sem peias do poder de estado. Chamada a combinar as demandas do movimento social e a prática institucional crescente. E a abrir caminho, no desdobramento de suas lutas parciais, a conquistas políticas e sociais no sentido do socialismo, sua expressão mais humana e fecunda, sua forma acabada e superior.

 

*Apolonio de Carvalho é militante político, participou da Guerra Civil Espanhola e da Resistência Francesa; ex-preso político, fundador do PT.

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