Anistia, teu nome é perdão. Mas como perdoar a quem não cometeu falta ou delito, e, não os cometendo, foi castigado? Se teu nome é perdão, deve este ser pedido às vítimas da injustiça e o arbítrio? Em vez de compaixão, neste caso, a anistia precisava ser um ato de arrependimento seguido de reconhecimento público e proclamação da injustiça. O perdão cabe ao ofendido. E há muitos ofendidos e humilhados que, sem culpa, tiveram de pagar pelo crime que não perpetraram.

Anistia teu outro nome é esquecimento. É fácil esquecer. Quase não fazemos outra coisa todos os dias. Esquecemos a hora, o compromisso, o encontro trivial, a pequena obrigação, o pequeno prazer e a pequena dor. Nossa vida é um tecido de esquecimentos, sabiamente preparado pela memória, que não teria capacidade de expor e ruminar os milhões de atos e tentativas de atos, pensamentos, sentimentos e sensações que compõem um dia na Terra. E são milhares de dias sob esse depósito de acontecimentos e fantasmas de acontecimentos que nos cercam e nos penetram. Se fôssemos guardá-los todos, que seria de nossa vida e nosso tempo? Eliminá-los pelo santo esquecimento, bálsamos de Deus ao mundo, pois não só anula o insignificante como tonifica a alma. Entretanto, tudo se pode, se deve e convém esquecer, quando é santo esquecer.

Se a anistia é um processo de esquecimento, que será da História? E que será dos esquecidos, se eles mereciam ser lembrados, vivos ou mortos que estejam, por que a injustiça os marcou? Vamos esquecer os infratores da lei geral, se isto ajuda a normalidade política, e se essa lei merecia mesmo ser respeitada, pois há leis tão desprovidas do espírito legal que não se dão ao respeito. Mas, e aqueles que nem isso fizeram, aqueles que não infringiram lei alguma, justa ou absurda, esses merecem perdão ou reparação total?

Anistia, começo a não compreender teu sentido. Vens com um ramo de oliveira na mão direita, mas ocultas na outra algo parecido com uma vergasta. Perdoas a quem não precisava ser perdoado mas exaltado, em vez de te curvares diante dele, porque sofreu punição iníqua, já é estranho perdão. E distinguir entre os que devam ser perdoados, para excluir os que faziam jus a perdão, pois não são criminosos comuns, soltos pela cidade, incapturáveis e impunes; excluí-los do perdão que justamente lhes é aplicável, isto eu não entendo.

Anistia, vens pela metade ou por dois terços? Consideras-te ampla e estreitas as dobras da tua veste? Absorveste mal o significado da palavra perdão, omites a profundidade da palavra esquecimento? Discriminas onde a razão, a filosofia e a ciência política se eximem de fazê-lo?

Ou vens tímida, precavida, no cálculo (ou na esperança) de que mais tarde se corrigirão os erros que deliberadamente cometes, restringindo-te a ti mesma em teu poder absoluto? Guardas para o futuro uma segunda edição de teu espírito, amplo por natureza? Estabeleces o crediário em matéria de justiça, de magnanimidade e visão política? Tens disfarçado no colo um conta-gotas, ou soletras à noite um manual de casuística, para aplicar à urgente realidade brasileira a Summa de Casibus Penitentialibus?

Demoraste tanto a vir, e pareces hesitar ainda na etapa final do caminho. Consultas papéis e mais papéis, como se no papel, e não no espírito que em todos os tempos te inspirou, estivesse a indicação precisa do teu roteiro. Um só papel e umas poucas linhas te bastam. Esquecimento e perdão (já que não haverá pedido de perdão a muitos dentre os perdoados) não ocupam espaço excessivo na página. Ou preferes fazer maior consumo de palavras, se estas, e só estas, bastam?

Julgas-te sábia, se limitas o raio da tua sabedoria? Tens-te por generosa, estabelecendo condições para tua generosidade? Sabes que podias ser perfeita, e a perfeição não te apraz?

A conveniência política poderá acolher-te com aplausos, considerando-te a melhor que se poderia almejar no momento, e nesse caso colam a etiqueta de provisória ou mais ou menos. Mas eu queria ver-te resplandecente em tua pureza e integridade. Queria aplaudir-te na generalidade e profundidade de teu conteúdo clássico. Uma bela idéia há de manifestar-se sem remendos ou ranhuras. Não podes trazer uma pereba na perna venusina. Vem completa, vem de túnica imaculada, vem nua, anistia. E, nua, não darás margem a murmurações e recriminações, protestos, ressentimentos, vociferações e lágrimas. Assim te desejo, assim te espero para os que necessitam de ti e os que já não necessitam, pois habitam a mansão além da política, das crises sociais e da injustiça (como, e com que ridículo, anistiar um Juscelino, um Lacerda?). Quero-te alta e perfeita, e não uma baixinha anistia de quatro dedos e andar cambaio. Quero que voes. Com asas te imagino, sobre os desencontros e mesquinhezas dos pobres intérpretes de tua grandeza luminosa.

 

*Publicado no Jornal do Brasil, em 28 de junho de 1979