Em 1967 era estudante de Direito aqui no Rio de Janeiro. Nessa condição acompanhei a evolução do movimento estudantil naquele ano em que ingressei na Universidade.

Os anos que seguiram foram tempos sombrios em que em cada dia sabíamos das prisões dos amigos, os suplícios por que passavam…

Íamos deixando nossas casas para vivermos escondidos e, assim, permanecermos lutando pelos nossos ideais…

Sabíamos dos amigos que partiam para longe.

Em 1967 era estudante de Direito aqui no Rio de Janeiro. Nessa condição acompanhei a evolução do movimento estudantil naquele ano em que ingressei na Universidade.

Os anos que seguiram foram tempos sombrios em que em cada dia sabíamos das prisões dos amigos, os suplícios por que passavam…

Íamos deixando nossas casas para vivermos escondidos e, assim, permanecermos lutando pelos nossos ideais…

Sabíamos dos amigos que partiam para longe.

Sabíamos dos amigos que partiam para sempre…

Esse tempo nunca vamos esquecer.

Era tempo das paixões e sonhos interrompidos; do olhar sem o abraço, para podermos nos proteger.

Era tempo de batalha: de um lado nós que formávamos um exército que queria tomar de assalto os céus; de outro lado um bando que queria preservar a tirania.

Era tempo de coragem, muita coragem e, sobretudo, muita solidariedade.

A partir de então, os familiares de presos políticos, entre os quais eu também me incluo, começaram a se esbarrar pelas prisões, auditorias militares, delegacias e todas as dependências onde pudesse existir um preso político.

A década de 70 foi inaugurada com o horror da morte e do desaparecimento dos nossos companheiros.

Ainda no início de 1968, algumas mães formaram um movimento que se chamou de União de Mães. Elas se reuniam em torno de trabalhos manuais e chás e atividades sociais para poderem passar informações sobre as novas prisões e a situação de saúde dos presos.

Conheci de perto, aqui no Rio de Janeiro, as senhoras que compunham esse Movimento pois algumas tinham filhos presos junto do meu então companheiro.

Nós, que já tentávamos organizar as famílias em torno das reivindicações dos coletivos de presos, fomos ampliando nossos conhecimentos pessoais e formando uma opinião sólida de que era necessário e urgente fazer um movimento visando a libertação dos presos.

Em 1975, soubemos da criação do Movimento Feminino pela Anistia pela dra. Terezinha Zerbini.

O momento ainda era muito confuso e de muita repressão, apesar da minúscula bancada oposicionista eleita pelo MDB já denunciar na Câmara as atrocidades cometidas contra os presos políticos.

Logo em seguida, no Movimento contra a Carestia, tentou-se novamente: falou-se em Movimento Primeiro de Maio pela Anistia que, ainda tímido, não repercutiu.

Nos anos de 1976 e 1977 já era mais comum falar-se de Anistia tanto na Câmara como na OAB, ABI e na CNBB, e nos encontros anuais da SBPC. Entretanto, na medida em que tomávamos conhecimento dos debates em torno da Anistia, sentíamos a urgência de tomar outras iniciativas, pois as intervenções eram confusas e a todo instante havia tentativas de classificar os presos e exilados em várias categorias.

Daí sentimos a necessidade de adjetivarmos a nossa Anistia: ela deveria ser Ampla, Geral e Irrestrita, para que pudesse abranger todos os atingidos e exigir o esclarecimento dos crimes cometidos pela Ditadura.

Participei do grupo que inaugurou o COMITÊ BRASILEIRO PELA ANISTIA – RJ, em fevereiro de 1978.

Dos momentos mais marcantes durante a luta pela Anistia, destaco:

– A primeira greve de fome nacional dos presos políticos, desencadeada no primeiro semestre de 1978, reivindicando a quebra do isolamento dos presos de Itamaracá/PE: Carlos Alberto e Rholine. O CBA-RJ participou ativamente das negociações e, no meio do movimento, meu companheiro e eu fomos até Pernambuco e, lá, soubemos da vitória do movimento grevista. Os familiares nos solicitaram que fossemos até o presídio na condição de advogados, para dar a notícia, pois temiam que os presos só fossem saber da decisão favorável no dia marcado para a visita dos parentes. Como ainda faltavam alguns dias para essa data, temiam que eles continuassem com a greve e, em conseqüência o estado de saúde deles se agravasse. Arthur Müller e eu fomos até o presídio acompanhados pelas esposas de dois dos presos. O presídio fica no meio da Ilha e o silêncio naquele lugar é quase absoluto. O princípio da visita foi tenso porque os presos não tinham noção de quem nós éramos e mantinham-se reservados e distantes (as esposas não puderam entrar). Começamos a citar nomes de presos do Rio e vimos que reagiam bem. Em seguida, dei um abraço no Assis – preso que visitava naquele momento – e sussurrei no ouvido dele: "vocês foram vitoriosos na greve, quebrou-se a incomunicabilidade". Naquele momento Assis gritou: "companheiros, vitória!!". E de todas as celas vieram os mais diferentes ruídos e batidas, formando um único e enlouquecido som, próprio das manifestações vitoriosas.

– Outro momento marcante foi o Congresso de Anistia no final de 1978 ocorrido em São Paulo – grandioso e comovente desde a abertura. Foi inesquecível: o encontro, reencontro, tudo muito intenso e ali nos dávamos conta de como tinha crescido o movimento no último ano.

– Depois, outro encontro, este internacional, ocorrido em Roma, em julho de 1979.

Na abertura Ruth Escobar leu um poema: "Inventário de Cicatrizes", de um preso político, Alex Polari. Todos choramos… Afinal aquele momento retratava um inventário de cicatrizes…

Ao nos despedirmos, já tínhamos um abraço de até breve:

"pode ir armando o coreto,
e preparando aquele
feijão preto,
estou voltando"…

Cantávamos naquele momento em que o Brasil sonhava

"com a volta do irmão do Henfil
com tanta gente que partiu
num rabo de foguete"…

– Chegou o dia da votação da Lei de Anistia. Os presos faziam greve de fome e através dela protestavam contra a lei discriminatória que a Ditadura pretendia fazer passar. O Movimento de Anistia estava na rua. O povo estava envolvido. A solidariedade crescia…

– Claro que todos esses episódios foram muito marcantes mas nada se compara à emoção da libertação dos prisioneiros e da chegada dos exilados.

A campanha da anistia foi, na minha avaliação, o movimento político mais importante dos últimos 30 anos.

Desenvolveu-se num clima suprapartidário onde se demarcaram os objetivos a serem alcançados e as lideranças do movimento foram suficientemente determinadas para não se deixarem levar pelos atalhos da política fácil e dos grandes acordos.

A lei que conquistamos não foi a que queríamos, e foi aprovada sob veemente protesto da sociedade organizada, que tomou fôlego e aprendeu com ela a propor e marchar junto para novas conquistas.

Através dessa experiência, a cada golpe da Ditadura, o movimento respondia com sua forma de organização espontânea. Assim foi na criação dos novos partidos, quando de igual forma o Partido dos Trabalhadores foi criado, apesar de não estar no roteiro da "abertura".

Assim foi na Campanha pelas Diretas.

Assim foi na organização e participação pró-Constituinte.

Numa radiografia do Brasil pós Anistia/79, o que vamos encontrar?: as ONG’s que permitiram a autonomia de organização de vários segmentos do movimento popular, muitas delas dirigidas por ex-integrantes do movimento pela Anistia, ex-exilados, ex-presos; nos partidos políticos do campo da esquerda, as principais lideranças vinham do Movimento pela Anistia; em todos os grandes acontecimentos e, principalmente, onde existam propostas de transformação social, lá estão as pessoas que tinham militado na luta pela Anistia.

 

*Ana Maria Müller, advogada de familiares de mortos e desaparecidos políticos, fundadora do CBA-RJ.

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