A campanha pela anistia
A campanha pela anistia
Por Vanya Sant’Anna
A Campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, no final dos anos setenta, foi o primeiro movimento nacional e unificado contra a ditadura militar e representou a maior frente política de caráter progressista da história brasileira.
A imagem é banal, mas muito precisa: a luta pela Anistia foi um rio caudaloso, de águas abundantes trazidas por muitos outros rios que, no subsolo da terra brasileira, teimaram em continuar fluindo, apesar da aridez e da crueldade do regime militar que penalizou milhares de brasileiros, como nunca antes na história do Brasil.
O golpe militar de 1964 determinou às forças populares a prioridade da luta pela democracia. Brasileiros de norte a sul, de leste a oeste, passaram a engendrar novas formas de luta, a definir novos processos organizativos, a se expressar por meios alternativos, garantindo oxigênio às consciências democráticas que jamais foram vencidas no longo período ditatorial.
Com o endurecimento político que sobreveio ao Ato Institucional n.º 5 mais sofrimentos e angústias foram impostos à sociedade brasileira. Ainda assim, permaneceram latentes, mas fortes, os anseios por liberdade, por democracia, por dignidade da maioria do povo brasileiro, apesar da interdição da ação política e apesar dos riscos que expressar pensamentos ou palavras contrários à nova ordem, desumana e antinacional, representavam para os brasileiros.
A prática, iniciada logo após a edição do AI-5, de prisões indiscriminadas, de torturas sistemáticas, embora aterrorizante, não impediu que as pessoas se organizassem de alguma forma para resistir como pudessem. Em primeiro lugar, familiares, amigos e advogados das primeiras vítimas começaram a tecer redes de informação e proteção, nem sempre suficientes para impedir a morte ou o desaparecimento de valorosos patriotas. No mínimo, a resistência dos primeiros anos da década de ’70 esculpiu em pedra o testemunho dessa época de trevas, terror e miséria.
Focos de resistência ao arbítrio, que afastou das Universidades, da Imprensa, da Política e das mais diversas atividades profissionais preciosos talentos, apareciam por todo o país, ainda que silenciados pela força da censura. As igrejas, de diferentes credos, foram sempre uma trincheira avançada na proteção de pessoas e instituições. Os estudantes, com a generosidade que lhes é própria, formaram as primeiras fileiras no movimento pela reconquista da liberdade e da democracia, pagando às vezes com a perda da sua liberdade, às vezes com a própria vida. Artistas e intelectuais encontraram novos meios e modos de expressar sua revolta contra a ditadura.
E chegou o momento em que as águas começaram a correr juntas e na mesma direção. A sociedade civil voltou a se organizar, a retomar posições nos sindicatos, nas associações profissionais, nos espaços livres dos meios de comunicação, por toda parte. Desde 1973, com as manifestações contra a morte nas prisões, como no caso de Alexandre Vannuchi Leme, de apoio aos presos políticos nas várias greves de fome que fizeram em protesto contra as condições das cadeias, com o Natal de Paz organizado em São Paulo pela Cúria Metropolitana, formava-se a consciência de que a luta pela democracia tinha, como ponto de partida, o fim das torturas e das prisões dos opositores do regime político.
As mortes, em São Paulo, do jornalista Vladimir Herzog (outubro/75) e do operário Manuel Fiel Filho (janeiro/76) deram ponto final ao medo que atormentava amplos setores da sociedade brasileira quanto à ação e mobilização políticas. Significaram um enorme basta! ao terror que parecia sem fim. As igrejas pontuaram o momento com a firmeza e coragem. As mulheres, companheiras e mães, foram as primeiras, na sociedade, a clamar por Anistia. Em 1975 foi criado em São Paulo, com a liderança de Terezinha Zerbini, o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) após a realização do Congresso Mundial da Mulher, no México, onde se decidiu que aquele seria o Ano Internacional da Luta pela Anistia. Cientistas e intelectuais brasileiros lançaram seus manifestos por liberdade e democracia exigindo Anistia na 28º Reunião da Sociedade Brasileira pelo Porgresso da Ciência (SBPC), em Brasília, em 1976, e pela volta ao Estado de Direito na “Carta aos Brasileiros”, lida por Goffredo da Silva Telles sob as arcadas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, dia 8 de agosto de 1977. Nesses mesmos anos, os estudantes, na luta pela reconstrução de suas entidades, proscritas pelos militares, lançaram sua palavra de ordem pela Anistia. O Movimento de Justiça e Libertação constituiu um importante fórum em defesa de religiosos ameaçados de prisão e expulsão do país por causa de suas posições em favor da população oprimida.
Em 1978, estavam dadas as condições para o nascimento do memorável movimento pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. Foram criados os Comitês Brasileiros de Anistia, primeiro no Rio de Janeiro e São Paulo, rapidamente em todos os demais Estados e no Distrito Federal, formados por personalidades, cidadãos e entidades da sociedade civil e com a decisiva militância dos familiares de presos, perseguidos e desaparecidos políticos. Nos diversos países, onde viviam exilados brasileiros, formaram-se comitês de anistia que tiveram enorme importância na divulgação internacional da campanha.
O movimento de anistia se estruturou em ritmo veloz, e forte foi o apoio conquistado nos mais diferentes setores sociais. A mobilização se dava nas ruas, em passeatas e atos públicos. A Praça da Sé, tradicional território paulista de manifestações políticas, foi reconquistada em ato pela Anistia. Jornalistas e artistas ecoavam a palavra de ordem da anistia em seus meios de comunicação e expressão. A mobilização se adensou no I Congresso de Anistia em São Paulo, nos vários Encontros Nacionais e Regionais, no Congresso Internacional em Roma. A rede dos comitês de anistia, dos núcleos do MFPA, de comissões de familiares de vítimas da repressão foi decisiva para a unidade do movimento, pela adequação de suas táticas, pela sua popularização por todo o território nacional. Em 1979, muitos sindicatos de trabalhadores fortaleceram a luta pela Anistia, em especial os que expressavam o novo sindicalismo, nascido no ABC paulista.
Pressionado, o regime militar, à moda da elite brasileira de sempre se antecipar às conquistas populares para não partilhar o poder, enviou o projeto de lei da anistia ao Congresso Nacional. O projeto atendia parcialmente aos objetivos da Campanha da Anistia e contrariava um de seus mais fortes princípios – o de que não poderia existir anistia para os algozes do povo brasileiro. Ainda assim, sua tramitação pelo Congresso Nacional, foi responsável por muitas páginas heróicas do movimento de Anistia.
O grande brasileiro Teotônio Vilela, chamado de Guerreiro da Paz, senador e presidente da Comissão que examinou o projeto de lei, empreendeu uma caminhada por todo o país para ouvir a voz dos encarcerados políticos, dos familiares de presos políticos mortos e desaparecidos, dos profissionais afastados de suas atividades por cassações, demissões e aposentadorias, de sindicalistas e representantes dos setores organizados da sociedade, o que amplificou ainda mais os objetivos dos movimentos de anistia e deu publicidade aos atrozes crimes cometidos pela ditadura militar. Os presos políticos tiveram participação decisiva, utilizando a principal arma que detinham na prisão: suas vidas. Iniciaram uma greve de fome nacional, que durou de 22 de julho a 22 de agosto, em todos os presídios, reivindicando a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita e contra a anistia parcial proposta pelo governo.
Finalmente, em 28 de agosto de 1979, foi aprovada a Lei nº 6.683, a Lei da Anistia. Os presos começaram a ser libertados, a maioria beneficiada por recursos jurídicos e não pela Lei da Anistia, que não foi ampla nem irrestrita. Ainda quando alguns segredos da ditadura começaram a ser revelados, deixando clara a autoria dos crimes de torturas, assassinatos e desaparecimentos, foi impossível responsabilizar os criminosos do regime militar porque a Lei da Anistia os protegia. Poucos dos atingidos pelos Atos Institucionais, cassados, aposentados, demitidos, retornaram ao exercício profissional porque a Lei da Anistia impôs condições tais para sua readmissão que a muitos apenas restou o caminho da aposentadoria, o mais das vezes proporcional. Quase a totalidade dos políticos que tiveram seus mandatos cassados e direitos políticos suspensos já havia cumprido suas penas antes, ou poucos meses depois, da promulgação da Lei.
A Campanha da Anistia, em que pese sua vitória parcial, foi diretamente responsável pela ampliação das conquistas democráticas do povo brasileiro e eternizou os direitos humanos como dimensão essencial das ações políticas. Legou à sociedade brasileira mecanismos de solidariedade ativa na defesa de todos que lutam pela liberdade, pela democracia, pela dignidade política. Com ela, recuperamos – as gerações de 64 e de 68 – a nossa própria dignidade e a possibilidade, sempre presente, de continuar na luta para fazer do Brasil uma pátria gentil e generosa para todos os seus filhos.