Como foi a farsa político-jurídica que condenou Lula e mais dez sindicalistas

Por Perseu Abramo*

Como foi a farsa político-jurídica que condenou Lula e mais dez sindicalistas

Por Perseu Abramo*

As proximidades da Segunda Auditoria, em São Paulo, amanheceram cercadas de tropas, na manhã do dia 25: o regime militar ia aplicar a Lei de Segurança Nacional contra 13 sindicalistas, acusados de incitarem à desobediência civil. Há um ano, eles haviam liderado a greve do ABC, no legítimo exercício de seus mandatos sindicais, e cumprindo determinações de assembléias massivas de centenas de milhares de metalúrgicos.

Raras vezes um processo judicial teve tão claramente expostas as suas variáveis políticas quanto este. Para o regime, tratava-se, em princípio, de manter a vigência da LSN, sustentáculo jurídico do poder militar sobre toda a sociedade. Para os trabalhadores, tratava-se de remover o obstáculo da LSN para poderem, livremente, organizar-se em torno da defesa de seus direitos mínimos: de trabalho, de sobrevivência, de reunião, de expressão, de greve, de liberdade de organização sindical e política.

Os advogados já há tempos temiam uma condenação. Não só pelos fatos públicos e notórios: mudança do procurador às vésperas do prazo para entrega das alegações finais da acusação, aditamento de mais um artigo ao que já pesava sobre a cabeça dos processados, má vontade e recusa de fixação de uma data que satisfizesse a ambas as partes, absurdas exigências de credenciamento para os próprios defensores legais, além de familiares e jornalistas, etc. etc. Mas também porque num caso como este, não bastam os fatos públicos: também contam as tendências, as opiniões, e os fatos escondidos. Um desses fatos escondidos; dias antes do julgamento, já estavam preparadas celas no presídio do Barro Branco. Outro: uma boa parte da sentença final foi batida em máquina diferente, indicando que, de certa forma, o voto já estava dado mesmo antes do dia 25.

Por que foram presos se a própria sentença os libertava?

Às vésperas do julgamento, os advogados apresentaram ao Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil — Seção de São Paulo, um documento em que, após descrever as condições restritivas impostas ao processo, demonstravam a falta de liberdade para o exercício de suas prerrogativas profissionais, prenunciando que poderiam, até, usar da faculdade de não comparecer à sessão da Auditoria. Por unanimidade, o Conselho da OAB manifestou sua solidariedade aos advogados, implicitamente endossando o eventual não comparecimento à sessão. E o Conselho Federal secundou o paulista, nessa questão.

A Auditoria, todavia, não adiou o julgamento, como deveria ter feito diante da primeira ausência dos advogados. Resolveu — ou resolveram por ela — fazer o julgamento assim mesmo, no improviso, à revelia de réus e advogados.

Consumada a condenação, os mandados de prisão foram expedidos. As partes entram em entendimento – inteiramente normal nesses casos – e é combinada a apresentação espontânea dos réus ao Deops, para tomar ciência da sentença, a fim de serem imediatamente libertados e poderem aguardar em liberdade a apreciação do recurso ao Superior Tribunal Militar. Essa condição – a suspensão do mandado de prisão caso os réus se apresentem para tomar ciência do processo – está expressamente e explicitamente registrada na própria sentença, o que dá aos advogados dos sindicalistas a necessária segurança para achar que o entendimento será cumprido pelas duas partes.

Por que aplicar a LSN em lugar das leis trabalhistas?

Os réus tomam ciência da sentença mas não são libertados na hora, como deveria ter ocorrido. Passam a noite no Deops e, durante boa parte do dia seguinte, permanecem presos, sem saber se seriam ou não soltos no mesmo dia, se teriam de ficar até depois do Carnaval ou, quem sabe, se teriam de ficar por todo o tempo da condenação. No começo da noite de quinta-feira, são todos soltos e voltam para suas casas.

A polícia restringiu a liberdade de defesa dos sindicalistas (na foto, Lula aguarda o julgamento). Os condenados: Lula (três anos e meio) José Almeida (dois anos e meio) Manuel Anizio (dois anos e meio) Nelson Campanholo (dois anos) Wagner Alves (dois anos) Djalma Bom (dois anos e meio) Enilson Simões (três anos e meio) Osmar Santos (dois anos e meio) Rubens Teodoro (três anos e meio) e Juraci Batista (dois anos e meio).

Por que eles foram soltos, se até minutos antes se dizia que não iriam mais sair da cadeia? Por que eles foram presos, se a própria sentença dizia que eles deveriam ficar em liberdade? Por que foram condenados, se todas as provas do processo diziam que eles deveriam ser absolvidos? Por que eles foram processados pela LSN, se os fatos se haviam dado no terreno das leis do trabalho? Por que, um ano antes, eles haviam sido depostos, seqüestrados e presos?

No dia em que o regime militar for varrido do Brasil, talvez muitas dessas perguntas encontrem suas respostas. Por enquanto, sabe-se muito pouca coisa. Uma delas: em Brasília, na Câmara dos Deputados, nesse mesmo dia, fazia-se a votação secreta para a Mesa; no momento em que a apuração dos votos indicava, a favor do candidato do Governo, uma diferença que fazia prever a derrota do adversário, começou a comentar-se que Lula e os demais sindicalistas seriam soltos. Outra: na manhã de quinta-feira, em várias seções da Ford, no ABC, numerosos operários começaram a cruzar os braços. Os patrões pressionaram e os ameaçaram de demissão. Em lugar de retornar ao trabalho, os grevistas conquistaram novas adesões: às seis horas da tarde, havia mais de 1200 operários em greve. Outra, ainda: em Brasília, no STM, um dos advogados tentou impetrar um habeas corpus para libertar os presos, mas foi aconselhado a não fazê-lo em favor de uma ação que deveria entrar em São Paulo mesmo, sob pena de a resposta em Brasília só chegar no dia 9 de março. Em são Paulo, contudo, a Auditoria também se negava a autorizar a libertação dos presos, até os últimos minutos do final do expediente. Cruzam-se mil telefonemas, de Brasília para São Paulo e vice-versa, do Deops para a Auditoria e vice-versa. De repente, em cinco minutos, a notícia que explode como uma bomba e surpreende os próprios advogados de defesa: os homens foram soltos e já estão indo para suas casas.

Completava-se a configuração política do processo. As mesmas variáveis que haviam determinado a repressão aos grevistas, o processo, a condenação, a prisão, também determinavam o relaxamento, a liberdade, embora provisória. Os jornalistas e observadores estrangeiros é com muita dificuldade que acompanham o processo, que compreendem as razões e as idas e vindas do regime de arbitrariedade; da mesma forma, não compreenderam como, no espaço de uma semana, o mesmo regime pode prender o Prêmio Nobel da Paz e depois demitir o policial que cumpriu a ordem de prisão.

“O julgamento de Pequim foi mais democrático!”

As entidades sindicais e políticas de vários países da Europa e dos Estados Unidos que enviaram mensagens de solidariedade aos sindicalistas também manifestaram a sua apreensão com os rumos da anunciada “democratização” do governo brasileiro. O Parlamento Europeu, com sede em Bruxelas, aprovou uma moção de censura ao governo do Brasil pelo não cumprimento de acordos que garantem o direito de greve. A solidariedade internacional dos trabalhadores – que Lula havia experimentado semanas antes, em sua viagem – tornou a manifestar-se na presença e na palavra de dirigentes da Itália, Suécia, Espanha, Portugal, Alemanha e Estados Unidos, que aqui vieram para acompanhar o processo.

Num momento inédito após a reformulação partidária, Ulysses, Brizola, Tancredo e Lula reuniram-se em Brasília, para que os três primeiros manifestassem sua solidariedade ao último. A direção nacional do PT, consumada a condenação; lançou nota oficial que afirma ser a organização dos trabalhadores e conquista do registro definitivo do partido a melhor resposta a dar às violências e ameaças da LSN e das demais leis repressivas aos trabalhadores da cidade e do campo e ao conjunto da sociedade brasileira.

E um repórter estrangeiro, à cata de notícias e explicações, chegou a exclamar, entre perplexo e irritado:

“Mas o julgamento de Pequim foi mais democrático!”.
 

* Texto publicado no Jornal Movimento, nº 296, de 02 a 08/03/81, p.6 e no livro “Um Trabalhador da Notícia”, publicado pela Editora da Fundação Perseu Abramo, São Paulo/SP, em 1997, p.213-216.