No final dos anos 1960, a grande maioria das organizações revolucionárias que atuam no Brasil escolhe o enfrentamento armado como meio para derrubar a ditadura civil-militar implantada pelo golpe de 1964. Mais do que derrubar a ditadura, essas organizações tem como objetivo o assalto ao poder para a constituição de um governo popular de programa socialista.

Em meados da década de 1970, porém, essas organizações são esmagadas pelo inimigo que, para isto, lança mão de uma das mais cruéis repressões conhecidas pelo povo brasileiro durante o século XX.

A repressão, desde seu início (1964), não se volta apenas contra os que escolhem a “via armada”, mas contra todas as tentativas de organização do povo.

É assim que, derrotados em suas táticas, aqueles revolucionários partem para uma autocrítica ou readequação de suas linhas de atuação, estabelecem novas formas de ação política e lutas. Recuam da idéia de uma escalada imediata visando à tomada do poder pelas armas, e se colocam como objetivo, no curto prazo, a conquista de um estado de direito, dirigido por civis, ainda que nos limites de uma sociedade capitalista. Entendem que uma democracia – mesmo que burguesa – é indispensável para a propaganda de suas idéias e propostas, e para o acúmulo de forças necessárias para a tomada do poder e construção do socialismo.

Para alcançar seus novos objetivos, as organizações remanescentes da chamada “luta armada”, novas organizações surgidas nessa nova fase e militantes cujas organizações foram destruídas ou se dissolveram e que permaneciam independentes, lançam-se ao trabalho de organização do povo, reforçando iniciativas já em curso e/ou criando novas.

As organizações de massa são os instrumentos indispensáveis para a nova política.

A prioridade desses trabalhos situa-se junto à classe operária, a seus setores mais de ponta – seja nas fábricas ou nos bairros (locais de trabalho e moradia). O chamado trabalho de massa. A conjuntura favorece.

Ao mesmo tempo, o trabalho se desenvolve junto aos setores médios de assalariados urbanos, onde floresce mais rapidamente, pelo maior acesso que estes têm às informações, pela consciência política mais desenvolvida no que diz respeito ao regime etc, etc.

Mas, se o trabalho em meio ao povo é levado abertamente através de frentes legais de luta, sua articulação passa ainda por uma estruturação política clandestina das organizações e grupos políticos revolucionários ou apenas de oposição.

Além das forças e militantes provenientes do período da “luta armada”, é preciso ter em conta que, desde o golpe de 1964, muitos militantes e quadros de esquerda permaneceram organicamente soltos, seja pela extinção de seus partidos de origem (como o PSB), seja pela desilusão com as forças de esquerda que não resistiram ao golpe, seja pelos diversos rachas no interior desses partidos e organizações, seja pela hegemonização do processo a partir do final dos anos 1960 pelas organizações da chamada “luta armada”. Não significa que todos esses indivíduos tenham apenas cruzado os braços. Alguns, em seus diversos espaços, tentaram resistências. Mas estão muito isolados, principalmente depois do AI 5, quando a repressão chega a seu auge. Na nova conjuntura inaugurada em meados dos 1970, porém, muitos dos trabalhos por vários deles iniciados irão ter condições de desabrochar, e outros desses militantes e quadros encontrarão outra vez os espaços necessários às suas reinserções na cena política, onde desempenharão muitas vezes importantes papéis.

Por fim, vale lembrar que outras agremiações políticas, como o PCB e algumas de cunho trotskista, que não participam da chamada “luta armada” – mas que são igualmente atingidas pela repressão – irão participar ativamente da nova conjuntura.

Conjuntura geral

Na segunda metade dos anos 1970, em termos internacionais, a fragorosa derrota dos Estados Unidos no Vietnã, a política de direitos humanos do presidente norte-americano Jimmy Carter e a crise do petróleo delineiam uma nova tensão e ordem mundiais. Os EUA ainda não desfrutam da hegemonia absoluta que hoje reivindicam. O mundo está polarizado entre as duas superpotências EUA e União Soviética, que rivalizam tanto em termos de influência política e desenvolvimento econômico, quanto em termos militares. É neste período que as premissas do neoliberalismo começam a dar seus primeiros passos, o mais radical de todos nesta época na Inglaterra, com a eleição da primeira-ministra Margareth Thatcher (1979). Esses passos culminarão dez anos depois (1989) com a famosa reunião do Consenso de Washington.

Em termos de Brasil, por sua vez, o modelo implantado em 1964 e aprofundado a partir de 13 de dezembro de 1968 (AI-5, Ato Institucional número 5) começa a fazer água.

No interior das forças que se aliam para desencadear o golpe, as fissuras já haviam começado em 1966, quando os militares alijam do projeto qualquer possibilidade de sucessão civil para o marechal Humberto de Alencar Castello Branco, que assume a presidência em 1964, onde permanece até 1967. Nesse momento, várias lideranças civis de direita tornam-se oposição, e tentam organizar a natimorta Frente Ampla, que pretende reunir inimigos históricos como Carlos Lacerda (UDN, entreguista e articulador do golpe) e o deposto presidente João Goulart (PTB), passando ainda pelo o também ex-presidente Juscelino Kubitschek (PSD). A crise deflagrada em 1966 faz com que, por exemplo, o jornal O Estado de S. Paulo (golpista de primeira hora) passe a criticar o regime, transformando-se definitivamente em oposição com o Ato Institucional nº 5 (13/12/1968) quando – entre outras coisas – são cassados vários políticos de direita e mentores do golpe, como Carlos Lacerda. O oposicionismo do jornal paulista se reforçará no final da década de 1970, com a girada da política internacional de Washington sobre os direitos humanos, e com a visita do presidente Jimmy Carter ao Brasil.

É bom ficar claro, porém, que tais dissidências são conservadoras e não se confundem em nenhum momento com as iniciativas de esquerda.

Embora este não seja o objeto de nossa atenção neste texto, seu registro é importante porque – além de ser um dado de peso para o entendimento daquela conjuntura – entre as brechas abertas por tais fissuras, foi muitas vezes possível assentar cunhas, aproveitando a relativa desorganização das tropas inimigas para avançar.

O fato é que os aliados da véspera já não se entendem e buscam saídas que se chocam entre si. O período que se inaugura com o Governo Ernesto Geisel (1974-1979) representa uma escolha de reajuste do regime e do sistema. Em termos de modelo econômico os primeiros sintomas da reorientação política, em consonância com a nova ordem mundial que se esboça, começa a dar claros sinais: o resultado dos acordos e empréstimos junto às grandes agências financeiras internacionais – particularmente com o FMI – passam a se voltar não mais para investimentos em áreas produtivas, como acontecera durante os governos civis-militares que o antecederam, mas no desenvolvimento do mercado de especulação financeira. Por outro lado, em termos de reorganização política do País, o período Geisel escolhe inicialmente a “distensão”, que se desdobra em um processo de “abertura lenta, gradual, porém segura”, que se prolonga no governo do general João Baptista Figueiredo (1979-1985) que o sucede e é o último presidente militar do período.

A expressão “abertura segura” implica no extermínio deliberado pelo Estado/Governo de algumas importantes lideranças de esquerda, entre as quais inúmeros quadros dos comitês centrais do PCB e do PC do B. Antes de abrir, são indispensáveis algumas medidas “sanitárias”.

Não é por acaso, portanto, que, ao mesmo tempo em o atual establishment tenta transformar Geisel no “campeão da democracia”, no paladino que, montado em seu corcel branco vem salvar o país de uma ditadura, durante a gestão deste general – diferentemente do que possa parecer – registra-se o maior número de assassinatos políticos de opositores.

O “milagre brasileiro” escorre pelo ralo, e o setor hegemônico da direita busca adequar-se à nova ordem econômica internacional e uma nova expressão política para seus interesses, o que pressupõe preservar o controle de todo o processo. A extensão da abertura pretendida por Geisel e seu estrategista Golbery do Couto e Silva, por sua vez, além das questões internacionais e das escolhas das elites brasileiras, dependia muito do nível de organização, mobilização e luta que a esquerda e a oposição fossem capazes de imprimir às suas ações.

Manifestações da ultra-direita

É importante ter claro que a sinuosa estratégia do Governo Geisel de buscar, ao mesmo tempo, adequar a reorganização do país à nova ordem internacional (de Washington), tomar medidas “sanitárias”, encontrar saídas para as divergências internas do que sobrara da aliança que fora a base do golpe de 1964 e controlar os movimentos populares e de trabalhadores num processo de abertura “lenta, gradual, porém segura”, representa apenas a direita do país.

Ativa, permanece também a ultra-direita.

Esta ultra-direita não aceita sequer as limitadas mudanças a que se propõe Geisel e, durante todos aqueles anos, continuará agindo através de diversos atentados terroristas, colocando bombas em bancas de jornais e em locais de encontros da oposição, invasão de sedes de jornais de esquerda ou de oposição etc, etc.

Entre outros, talvez os resultados mais graves e de maior visibilidade desse tipo de ação tenham sido o assassinato em abril de 1976 da costureira Zuleika Angel Jones (Zuzu Angel), mãe do desaparecido político Stuart Edgard Angel Jones (assassinado em junho de 1971); a carta bomba enviada contra a OAB, no Rio de Janeiro, que explodiu provocando a morte de dona Lydia Monteiro da Silva (27/08/1980), funcionária da entidade, e as bombas contra o Rio Centro (RJ) durante o show comemorativo do 1º de maio de 1981, os dois últimos já no governo do general João Baptista Figueiredo. Muitos desses atos estavam na órbita da Operação Cristal, organizada pelos extremistas de direita.

Outras matrizes da esquerda e da oposição

A ditadura, logo nos seus primórdios, além de intervir nos sindicatos de trabalhadores e demais organizações populares, havia extinguido os partidos políticos que existiam legalmente antes do golpe (PSB, PTB, UDN, PSD, etc.) e criado por decreto dois novos: a Arena – Aliança Renovadora Nacional, o partido da situação, e o MDB – Movimento Democrático Brasileiro, o partido da oposição consentida. Os partidos comunistas, mesmo antes do golpe, já eram considerados ilegais.

Com a evolução da conjuntura que se desenvolve desde a criação dos dois novos partidos, em meados dos anos 1970, o MDB não apenas passa a englobar setores realmente de oposição à ditadura, como passa a crescer em todo o Brasil e a ser pressionado por seus eleitores e pelos movimentos sociais a assumir uma oposição mais efetiva – o que é também um dado da nova conjuntura. Mais que isto, algumas organizações de esquerda daquele período decidem-se pela filiação de parte (ou de toda) sua militância naquele partido, que serve em todo o país para eleger para os legislativos candidatos ligados a essas organizações. Outras organizações passam a trabalhar para a eleição de candidatos da esquerda do MDB, mas não assumem filiação à legenda. Além de tudo isto, a situação internacional, a abertura e as mudanças que se delineiam, mais que permitem, exigem uma ação de perfil nitidamente oposicionista para o conjunto da legenda, para que se legitime frente ao povo e possa ressurgir no pós abertura como a grande força dirigente do país.

Por sua vez, no interior da Igreja Católica afirmam-se os setores mais progressistas e de esquerda (processo que amadurecia havia anos), tomando corpo a política que tem como alicerce as Comunidades Eclesiais de Base. Ao mesmo tempo, em muitos pontos do país, cúrias criam suas comissões Justiça e Paz, organismos de defesa dos direitos humanos.

Essas mudanças em setores significativos da alta hierarquia católica, refletindo-se na hegemonia no interior da instituição, além do mais, representam uma ruptura entre as forças da ditadura, pois a Igreja fora, em 1964, enquanto instituição, um dos importantes patrocinadores do golpe. O Vaticano foi um dos primeiros Estados a reconhecer o novo regime, havendo o núncio apostólico apresentado credenciais ao marechal Castello Branco, imediatamente após sua posse na Presidência, em 11 de abril de 1964. A guinada obedece não apenas a problemas internos da Igreja Católica no Brasil, mas também à política dos pontificados dos papas João XXIII e Paulo VI.

Os cristãos protestantes também passam a imprimir uma dinâmica cada vez mais progressista (muitas vezes de esquerda) em parte de suas igrejas.

O Ecumenismo, por seu lado, passa a criar espaços e organismos de colaboração entre as diversas confissões cristãs (católicas e protestantes) com a participação, algumas vezes, de representantes da comunidade judaica.

Construção dos instrumentos de luta

Com um projeto de organização do povo e sua articulação com os setores interessados na derrubada da ditadura, a esquerda (marxistas, socialistas de diversas tendências, setores católicos e de outras confissões cristãs – organizados ou não) lança-se à construção dos instrumentos necessários aos seus projetos para aquele novo momento da luta: organizações sindicais, associações profissionais e de bairros, centros culturais e de estudos, imprensa.

Nos bairros populares, além da retomada das sociedades amigos do bairro e associações de moradores, organizam-se os movimentos por creches, saúde, habitação, transporte, pela legalização de loteamentos clandestinos, educação, saneamento básico etc, etc.

No setor operário, nas fábricas, o trabalho irá se concentrar sobretudo entre os metalúrgicos, químicos, petroleiros, eletricitários e outros setores considerados de ponta (estratégicos), ainda que várias outras profissões também sejam alvo dessa tentativa de organização do povo, como coureiros, vidreiros, padeiros, tecelões, sapateiros etc.

Criam-se novas associações profissionais entre os assalariados dos setores médios urbanos, algumas de caráter pré-sindical. Mesmo os funcionários públicos, proibidos de manifestação ou organização sindical, começam a se mobilizar. Professores, arquitetos, sociólogos, médicos e outros profissionais da saúde, economistas, bancários, artistas e técnicos de teatro, jornalistas, artistas gráficos e fotógrafos e outros assalariados urbanos (e mesmo alguns profissionais liberais) fortalecem suas organizações no interior dos seus locais de trabalho e na conquista ou criação de suas entidades de classe.

Diretorias de sindicatos e associações são conquistadas pela esquerda e forças de oposição, banindo dos seus comandos pelegos e colaboracionistas do regime – coroamento de trabalhos que às vezes persistiam havia mais que década.

Organizações de esquerda retomam sua ação junto ao movimento estudantil. Os estudantes se mobilizam e passam à reconstrução de suas entidades fechadas e proibidas pelo regime civil-militar de 1964 (centros acadêmicos, uniões estaduais dos estudantes e por fim a UNE – União Nacional dos Estudantes).

Surgem movimentos e entidades em torno de “temas específicos”: mulheres (movimentos femininos e feministas), homossexuais (homens e mulheres), movimentos negros e indígenas, ambientalistas etc.

  A imprensa de resistência

A criação de uma imprensa de resistência, um dos instrumentos indispensáveis àquele momento, passa também à ordem do dia. A esquerda em particular e a oposição em geral lançam-se a essa tarefa. Proliferam publicações populares, de resistência, de oposição e socialistas, somando-se a iniciativas já existentes anteriormente, como os jornais O Pasquim e o Opinião.

São publicações legais. Algumas de caráter geral que organizam e veiculam o pensamento, o posicionamento e as análises e propostas de uma organização clandestina de esquerda ou de uma frente de várias dessas organizações como os jornais Movimento (SP), Em Tempo (SP), Companheiro (SP), Versus (SP), O Trabalho (SP), O Povão (PE), Resistência (PA), Hora do Povo (SP); outras, de caráter sindical ou popular, voltadas mais especificamente para uma região, setor ou tema, como o Jornal da Vila (SP, zona sul da capital), o Jornal da Periferia (SP, zona sul da capital), o Repórter de Guarulhos (SP, município de Guarulhos), o EspalhaFato (SP, zona leste da capital), o Repórter de Campinas (SP, município de Campinas), o Jornal da Baixada (RJ, Baixada Fluminense) e o ABCD Jornal (SP, municípios do Grande ABCD); outras publicações ainda, dedicam-se centralmente a temas específicos (ainda que sempre colocados no quadro político geral da ditadura) pertinentes às mulheres, como o Maria Quitéria e O Mulherio; dos homossexuais masculinos – O Lampião de Esquina, ou femininos – Chana com Chana, para citarmos apenas alguns exemplos, uma vez que o levantamento e o estudo sistemático dessas publicações no nível nacional ainda esteja por ser iniciado.

Muitos desses jornais – sobretudo aqueles que descrevemos como de caráter sindical ou popular – desdobram suas atividades em centros ou associações culturais de trabalhadores, com atividades que mesclam debates, palestras e seminários (sobre os mais diferentes temas e assuntos), cursos, organização de grupos de teatro, projeção de filmes, exposições etc.

As entidades sindicais também revitalizam ou criam seus órgãos de comunicação como o Jornal Unidade do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, estruturado desde a vitória da oposição daquela categoria em 1975; a Tribuna Metalúrgica, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, e tantos outros Brasil a fora.

A Cúria Metropolitana de São Paulo, por sua vez, reorienta seu jornal O São Paulo.

A importância de todos esses tipos de publicações é sem dúvida inestimável para o período. Muitas delas foram sistematicamente perseguidas e tiveram edições inteiras proibidas de circular, censores instalados em suas redações ou sofreram invasões ou atentados. Provavelmente as mais duramente atingidas foram os jornais Movimento e Em Tempo.

Cumpre notar que a contribuição dessas publicações comporta diversos aspectos:

. organização e divulgação das informações sobre lutas, perseguições, resistências, atentados terroristas da direita encastelada no poder, arbitrariedades e corrupção dispersas por todo o país;

. organização do debate político e ideológico e da própria esquerda em termos locais, regionais e nacional, e sistematização de propostas de ação coletiva;

. divulgação dessas informações no país e no exterior, diretamente através de sua distribuição – além da esquerda dos diversos países, é preciso lembrar que havia então milhares de brasileiros exilados espalhados pelo mundo;

. divulgação “por tabela” dessas informações, no Brasil e no exterior – isto é, gerando repercussão na imprensa internacional e/ou criando situações que forçavam a grande imprensa brasileira a ir além dos limites da censura oficial. Um exemplo claro disto é quando o jornal Em Tempo publica uma denúncia assinada pelos presos políticos de São Paulo com a ficha de dezenas de torturadores. A edição foi apreendida, o jornal processado. Criou-se, no entanto, tamanho escândalo no país e no exterior, que os grandes jornais brasileiros foram obrigados a repercutir os fatos;

. organização de militantes de esquerda dispersos (jornalistas ou não) para a atuação nos movimentos gerais de oposição, nos movimentos populares e a organização desses próprios movimentos;

. ancorado nos movimentos de oposição ao regime que ascendem, é possível a esse conjunto de publicações, em muitos momentos, reverter pauta e agenda de discussões que o regime pretendeu impor;  é preciso termos também em mente que o processo de organização da categoria dos jornalistas para a retomada de suas entidades sindicais (sobretudo em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) criará no interior das redações dos grandes veículos impressos, rádios e TVs (que permitem brechas, na medida mesmo que suas contradições com o regime se aguçam) importantes núcleos de pressão e atuação interna de trabalhadores de esquerda ou pelo menos de oposição, na direção da definição de pautas, busca de fontes, tratamento e priorização de temas etc. Essas forças de pressão interna nas redações, das quais muitas vezes participam leitores, simpatizantes, militantes ou colaboradores da imprensa de resistência, funcionam também como amplificadores e multiplicadores através da grande mídia dos temas e pontos de vista divulgados pelas publicações da resistência.

A conquista das entidades sindicais de jornalistas, concomitante ao aprofundamento das divergências entre as forças que compõem o regime, avançará em muito o nível de organização e mobilização desse setor. Em São Paulo, por exemplo, chegou-se à constituição do CCRR – Conselho Consultivo de Representantes das Redações, em muitos dos principais locais de trabalho. O CCRR funcionava praticamente como um elo de ligação entre o Sindicato e a base, não apenas levando propostas recolhidas das discussões nos locais de trabalho para serem articuladas na política geral do Sindicato, como encaminhando essa política geral – elaborada a partir das assembléias da categoria – nos locais de trabalho.

Teatro e cinema: outras linguagens da resistência

Apesar de sua importância (real) saltar para o primeiro plano, ameaçando monopolizar de modo incorreto o espaço das comunicações naqueles anos, a verdade é que várias outras linguagens se recriam como instrumentos das lutas que então se travam.

Mesmo na imprensa de resistência, para além dos textos, cumpre chamar a atenção para três aspectos:

. o florescimento das charges, ilustrações, tirinhas, histórias em quadrinhos, vinhetas e todo o arsenal do fazer dos artistas gráficos;

. o papel dos fotógrafos e seu trabalho de registro, documentação e construção de uma história imediata através da imagem;

. a busca, pesquisa e discussão de uma linguagem gráfica (projeto gráfico e diagramação) com a prática de distintas experiências.

O fato é que outras linguagens para além das concernentes à imprensa também vão dar importante contribuição para o ascenso e desenvolvimento dos movimentos sociais daquele momento, com contribuições e mecanismos semelhantes àqueles que apontamos no caso das publicações, ainda que certamente com características próprias e numa escala mais reduzida.

Aqui vale a pena destacar os grupos de teatro e o cinema.

Diferentemente das demais formas de expressão de que estamos tratando (e inclusive do cinema), a representação teatral carrega consigo uma efemeridade que necessita de outros registros para além do seu próprio fazer para que sua memória se estabeleça. Isto cria portanto uma dificuldade maior na sua pesquisa e reconstrução histórica. O fato é que muitos grupos se espalham pelas periferias, bairros populares, fábricas e escolas, por todo o Brasil, aglutinando atores, atrizes, diretores(as), dramaturgos(as), cenógrafos(as), técnicos(as) em geral e todas as profissões ligadas ao fazer teatral, tratando diversos dos temas colocados por aquela conjuntura. Eram profissionais, estudantes, amadores e gente que se contagiou pelo assunto. Para citarmos apenas alguns desses grupos – e apenas como uma amostra (pois mais que no caso da imprensa aqui a pesquisa está ainda mais longe de ser começada) temos o União e Olho Vivo (SP), O Grupo de Teatro da Zona Leste (SP), os grupos indigenistas de teatro da Amazônia (particularmente em Manaus), o Grupo Treta (teatro de rua – SP), o Grupo de Teatro da Associação Cultural ABCD Jornal (SP), o grupo Forja (SP), o grupo teatro/circo Abracadabra (SP) etc, etc, etc. Alguns acabaram se ligando a sindicatos conquistados pela oposição/esquerda, como o Grupo Treta, que será incorporado ao Sindicato dos Bancários; outros já surgem como atividade ligada a sindicatos, como o Grupo Forja, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Outros, como o da Associação Cultural ABCD Jornal, acabam por se desenvolver a partir de centros culturais populares, muitos deles (como neste caso) resultantes do desdobramento da ação de jornais da imprensa de resistência junto a uma região e/ou a um setor de trabalhadores etc.

Em termos de cinema, sem dúvida alguma, o mais marcante daqueles tempos em termos do que estamos falando, ficou por conta do documentarismo. É importante lembrar que o vídeo ainda não alcançara o desenvolvimento tecnológico e a popularização de que passará a gozar poucos anos depois. Portanto, caberá fundamentalmente a cineastas, trabalhando em geral com bitola de 16 mm, o trabalho na área das imagens em movimento. Além do cinema, foi utilizado o também áudio-visual, combinação de slides com locução e/ou música, dos quais provavelmente um dos mais importantes foi o realizado em Pernambuco sobre a greve dos canavieiros da Zona da Mata daquele estado.

No cinema, o prólogo dessa tendência (enquanto movimento), resgatando a preocupação de juntar-se à vida do povo e retornar o produto a seus protagonistas, pode ser marcado com o Cinema de Rua, levado a cabo por um grupo de professores e alunos da ECA – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Ali, trabalhava-se ainda (programaticamente) com a construção de retratos, perfis, sem a intenção analítica.

Será no mesmo leito desse movimento, mas já com uma preocupação nitidamente de análise, que despontará como talvez o mais importante conjunto, o trabalho realizado através do Departamento de Cinema do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Não apenas por seu volume, diversidade de temas, sistematicidade e qualidade técnica, mas, sobretudo pelo fato de ter sido um instrumento importante para o trabalho de organização de base da categoria, expandindo-se posteriormente através de cópias por todo o Brasil. Além disto, é possível através deste material reconstituir boa parte da história do movimento operário do ABC naquele momento, desde antes das greves até seu desenvolvimento e desenlace. Destacam-se aqui filmes como Teatro operário, Acidente de trabalho, Congresso da mulher metalúrgica, A greve de março e o longa-metragem Linha de montagem. Vários outros cineastas também irão registrar e produzir trabalhos sobre o ABC, mas apenas a partir das grandes assembléias de Vila Euclides, como os trabalhos Greve! e O ABC da greve.

São também deste período e desta safra de documentários: Fim de semana (sobre a autoconstrução), Braços cruzados, máquinas paradas (sobre a greve e a oposição metalúrgica de São Paulo – capital), Luta do povo (sobre os movimentos de bairros), Um caso comum (sobre o movimento de saúde), Santo e Jesus dos metalúrgicos (sobre Santo Dias e sua luta), Em nome da segurança nacional (sobre o Tribunal Tiradentes que julgou e condenou a Lei de Segurança Nacional). Ainda que com outro viés (o da reconstituição histórica), é importante lembrar também Libertários, documentário sobre o movimento anarquista no começo do século XX no Brasil.

A fecundidade deste movimento de cineastas e demais trabalhadores no ofício do cinema pode ser medida pela criação da CDI – Cinema Distribuição Independente, organizada exatamente por aqueles que se lançam ao tipo de trabalho que descrevemos acima.

Por fim, é indispensável lembrar que as reuniões anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, são importantes encontros dos intelectuais acadêmicos da resistência, transformando-se, naqueles anos, em importantes fóruns de discussão e debate político da esquerda e da oposição, não apenas das questões imediatas em pauta, mas sobre o futuro do País.

Alguns marcos da mobilização

O assassinato do jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo e professor da USP, em 25 de outubro de 1975, nas dependências do Doi-Codi (São Paulo/SP), depois de uma infamante campanha promovida pelo jornalista Cláudio Marques, através de sua coluna jornalística, detona uma onda de manifestações em todo o país. Em São Paulo, os protestos culminam com um culto ecumênico na Catedral da Sé, oficiado por D.Paulo Evaristo Arns (cardeal arcebispo de São Paulo), pelo reverendo (pastor) Jaime Wright e pelo rabino Henry Sobel, reunindo milhares de pessoas. Presentes não estão apenas os jornalistas e suas entidades (Sindicato, Federação Nacional e Associação Brasileira de Imprensa – ABI), mas amplos setores médios urbanos organizados (sobretudo os assalariados), a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, a Ordem dos Advogados do Brasil, o movimento estudantil, os representantes do MDB e mesmo as entidades populares e alguns sindicatos e oposições sindicais operárias.

Menos de três meses depois, um novo assassinato ocorre nas mesmas circunstâncias de Herzog: o do operário Manoel Fiel Filho (metalúrgico da capital). Preso em seu local de trabalho (empresa Metal Arte), no horário do almoço do dia 16 de janeiro de 1976, também é morto sob torturas no Doi-Codi de São Paulo no dia seguinte (17/01/76), acusado de ligações com o PCB. Manifestações, pressão da opinião pública nacional e internacional e as contradições dentro do próprio regime levam ao afastamento do então comandante do II Exército – general Ednardo D’Ávila Mello.

O Movimento do Custo de Vida/Contra a Carestia mobiliza milhares de donas de casa e todos os setores de oposição, em diversas manifestações públicas.

O assassinato do operário Santo Dias da Silva por um PM num piquete em frente à fábrica Silvânia (zona sul), durante uma greve de metalúrgicos na capital paulista, aos 30 de outubro de 1979, faz com que cerca de 40 mil pessoas ocupem a cidade de São Paulo, num longo cortejo que sai da Igreja da Consolação (Centro) por volta da hora do almoço, ocupa ruas e avenidas, acompanhando o corpo até o cemitério onde é enterrado no final da tarde, na zona sul. Santo Dias era membro da Pastoral Operária de São Paulo, candidato a vice-presidente da Chapa 3 de oposição à diretoria pelega de Joaquim dos Santos Andrade, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo (capital), e integrante do Comitê Brasileiro pela Anistia – CBA/SP.

Naqueles anos, os grupos que se vêm formando, de solidariedade aos presos, exilados, banidos e demais perseguidos pela ditadura, conseguem se estruturar nacionalmente. Esses grupos surgem desde o golpe, ampliam-se com a prisão dos estudantes no Congresso da UNE de 1968 (Ibiúna-SP) e, se inicialmente são as mães dos atingidos que se mobilizam, logo em seguida eles se ampliam com a participação de outros familiares, amigos e simpatizantes dos perseguidos políticos e dos próprios perseguidos políticos (ex-presos, caçados, exilados etc.). Por volta de 1977-1978, tais grupos ganham massivo apoio das entidades representativas dos setores médios urbanos, do movimento estudantil, de alguns sindicatos operários e de oposições sindicais operárias. Criam-se os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs) em todo o país (e também no exterior, através dos exilados) que, em novembro de 1978, realizam seu primeiro Congresso, no TUCA (Teatro da Universidade Católica) e no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.

O Movimento pela Anistia representa provavelmente o primeiro espaço de atuação em que a esquerda brasileira (desde os massacres da primeira metade dos anos 1970) consegue formular uma proposta que a unifique em sua grande maioria, ganhar outros setores da oposição e empolgar grande parte da Nação, expressando-se em mobilizações de massa e refletindo-se no interior de instituições do Estado, como o Congresso Nacional e o Judiciário.

Embora não tenham sido totalmente vitoriosos (por diferença de apenas um voto) em sua proposta de Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, será graças às lutas dos CBAs que o Congresso aprovará, no dia 28 de agosto de 1979 a lei de Anistia que permitiu – apesar de seus limites – a libertação dos presos políticos, a volta dos exilados e banidos, a reincorporação dos direitos políticos por milhares de brasileiros cassados, a volta à legalidade de milhares de militantes condenados à clandestinidade etc. O ponto de derrota mais grave nessa questão foi a aprovação da Anistia Recíproca – aberração jurídica que absolvia todos os torturadores, assassinos, ocultadores de cadáveres e seus mandantes, que jamais foram julgados.

  O desafio de ocupar as ruas e praças

Não se pense, porém, que essas manifestações ocorrem de maneira consentida ou tranqüila. Ao contrário, o ir às ruas e às praças era sempre um desafio, com prontidão das forças de segurança e ameaças – muitas vezes concretizadas em intervenções diretas contra a massa, como na grande manifestação do Movimento do Custo de Vida convocada para a Praça da Sé, em São Paulo, a invasão da PUC e várias das manifestações estudantis, para não falarmos das greves.

Por outro lado, a preparação e a decisão dos atos mais amplos de resistência envolvem, além de assembléias ou outros tipos de reuniões internas de diversas categorias e setores, a organização de um fórum (muitas vezes informal) para sua coordenação geral, uma série de contatos e reuniões clandestinos e semiclandestinos (formais ou não), e uma delicada articulação e costura dos setores mais moderados da oposição.

É preciso observar também que, no campo da esquerda, alguns setores (minoritários, e formados geralmente por organizações surgidas em meados dos anos 1970) entendiam aquela conjuntura como pré-revolucionária, e outros (também minoritários) resistiam sempre a avançar para além dos marcos permitidos pelo regime, semeando o ancestral medo de “um retrocesso” (o que significava deixar sempre nas mãos do poder a banca: o estabelecimento do jogo e suas regras, como já o haviam feito em 1964). Além dessas, várias outras divergências e disputas de hegemonia fervilhavam no caldeirão da esquerda – prenunciando já os alinhamentos e políticas que assumirão no pós-abertura.

A grande arte é unificar toda essa diversidade, para o que, em muitos momentos – como na campanha pela Anistia, para citar apenas um exemplo – mais contribuíam os fatos que os argumentos.

Os metalúrgicos do ABC, sua importância e limites

É nesse contexto geral que eclodem as greves dos metalúrgicos do ABC paulista, no final dos anos 1970. Essas greves culminam uma longa caminhada.

Os operários dessa região já vêm num processo de organização de anos, com a participação ativa de organizações e militantes de esquerda que ali atuavam, elaborando estratégias e organizando comissões de fábricas, clandestinas ou semiclandestinas, e participando, muitas vezes, dos (ou junto aos) próprios sindicatos e suas direções. Como parte do mesmo processo, naquela região também florescem movimentos de organizações populares, com destaque para os diversos movimentos organizados nas favelas por moradia, infraestrutura, saneamento básico etc. Ou seja, o ABC paulista – como não podia ser diferente – está integrado, faz parte de todo aquele contexto que acima tratamos.

O mais importante diferencial dessas greves, com relação aos movimentos de que acima tratamos, reside no fato de se constituir em um movimento de operários da ponta mais avançada da produção nacional (setor estratégico) e organizados desde seus locais de trabalho. Ou seja, a suspensão do trabalho e, portanto, da produção naquele grande centro metalúrgico (ABC paulista), põe em xeque o principal setor da economia brasileira, influindo ainda, diretamente, na vida e na política daqueles municípios onde estão instaladas as grandes montadoras e outras metalúrgicas fornecedoras dessas montadoras, desdobrando-se (também diretamente) por bairros daqueles municípios e de municípios vizinhos (como São Paulo) onde moram os grevistas e onde outras formas de organizações populares e movimentos encontram-se articulados, desencadeando o chamado efeito dominó e, sobretudo, batendo de frente contra o próprio núcleo da política econômica, salarial e trabalhista do regime. Além disto, a extensão da greve – a quantidade de grevistas – também resulta numa outra qualidade diferencial do movimento.

É preciso ter claro, porém, que sem o paciente trabalho de organização no interior das fábricas, construído durante anos e com intensa participação e empenho de militantes da esquerda clandestina então organizada e de outros que não se ligam a qualquer das organizações, mas com as quais dialogam e interagem, não haveria greve. Além disto, sem sua extensão por todas as grandes fábricas da região e o apoio dos milhares de núcleos de organização de outros trabalhadores e do povo em todo o País, que lhe garante suporte político e social, o movimento grevista do ABC teria corrido o risco de ter sido isolado e derrotado, como acontecera com as greves operárias de Osasco (SP) e Contagem (MG) em 1968 que, envolvendo sempre uma única unidade produtiva, isolada e sem respaldo organizado, numa conjuntura em que a ditadura ainda se mantinha forte, foram presas fáceis da repressão que cercou as fábricas, prendeu, torturou e processou vários dos seus dirigentes e participantes. Aos que conseguiram escapar coube apenas a clandestinidade. E na clandestinidade, alguns acabaram assassinados.

Como todo gesto humano de grande significado é sempre maior do que as intenções de seus autores oficiais, naquele momento, ao sair na frente, o movimento dos operários do ABC representa, muito além de suas reivindicações específicas, vários outros interesses que unificam a luta dos trabalhadores e do povo – essa gente anônima – que se organizara em todo o Brasil: o direito de greve, de organização e de manifestação, o fim das políticas econômica e salarial do governo, o fim da própria ditadura. Por mais que suas principais lideranças hesitem e até se neguem a assumir bandeiras das lutas mais gerais que são travadas naquele momento e tentem limitar o movimento a suas reivindicações específicas, o processo foi mais forte que elas. E, entre outras coisas, esse processo envolve as articulações que se estabeleceram no seu interior e no seu entorno pelas forças de esquerda. Além disto, a própria ação da direita empurra essas lideranças recém-iniciadas e ainda sem história, para novos rumos.

Um exemplo claro do que se pretende dizer: as principais lideranças do ABC (particularmente São Bernardo do Campo), em pleno noviciado, no início da campanha pela Anistia, convidadas, recusam-se de modo incisivo a participar desse movimento, que entendem como coisa de “classe média”. Mais que isto, acreditam sinceramente que operário (trabalhador) não deveria fazer política, mas se limitar ao sindicalismo.

Sob anos de ditadura, sem qualquer militância anterior, numa sociedade fechada a qualquer discussão, aqueles dirigentes, neófitos em seus personagens, haviam introjetado ao pé da letra a ideologia que a burguesia triunfante transformara em lei. E introjetaram até mesmo o legalismo frente à legalidade imposta, como se a legitimassem. Somente depois da invasão e intervenção naqueles sindicatos e de suas lideranças terem sido enquadradas na Lei de Segurança Nacional (LSN) e detidas, é que esses dirigentes sindicais procuram os CBAs, e passam a entender (ou ao menos sentir) o quanto a LSN e a Anistia tinham a ver com eles.

A mesma hesitação e resistência, fundadas nos mesmos argumentos, se repetirão poucos anos depois, no momento da reforma da legislação partidária, quando organizações de esquerda através de suas lideranças públicas ou seus jornais passam a propor a fundação do Partido dos Trabalhadores.

O Comitê de Solidariedade e o respaldo social e político

De qualquer modo, fazer a greve, por si só, já significava exercitar na prática o direito de greve negado pelo regime. Por sua vez, as mudanças exigidas na política econômica e suas conquistas significavam uma fratura no modelo adotado desde 1964. E o ABC estava em greve. Uma grande e massiva greve.

Forma-se então um grande e amplo Comitê de Solidariedade à greve do ABC, proposto e coordenado por representantes sindicais das mais diversas categorias, entidades democráticas, associações, movimentos populares e de bairros, movimentos organizados em torno da questão “gênero” (as mulheres desempenharam importante papel), movimentos em torno das questões étnicas (com destaque para os negros), parlamentares da ala esquerda do MDB, “personalidades democráticas”, representantes da imprensa de resistência etc. Os representantes dessas diversas entidades e movimentos são, em sua grande maioria, quadros das organizações políticas clandestinas de esquerda existentes, quadros oriundos de organizações e partidos de esquerda que atuaram nos anos 1960 (desde antes do golpe) e primeira metade 1970 e que deixaram de existir enquanto organizações depois da grande repressão, ou, em outros, dos trabalhos da Igreja. Assim acontece com vários fóruns gerais montados naquele momento e com o próprio CBA. O Comitê de Solidariedade (bem como outros fóruns que se formariam neste período em torno de lutas concretas e de interesse geral), embora não responda pelo movimento do ABC (no caso) nem o dirija – na verdade o interpreta no contexto geral do País, mobiliza o apoio de forças em todo o território nacional (e mesmo entidades internacionais), criando um respaldo e uma dimensão que a greve por si só e isolada não alcançaria: o repúdio organizado de grande parte da nação ao regime da ditadura.

Na verdade, além da irrefutável solidariedade material e política aos grevistas (e até para isto e por causa disto), o Comitê forçava a ampliação dos limites da atuação política consentida pelo regime.

As comemorações do 1º de Maio naqueles anos, também reassumem dimensões e significados jamais vistos desde o golpe de 1964. Todas as categorias profissionais, movimentos populares, setores de oposição e de esquerda estariam lá representados, no Estádio de Vila Euclides, apesar da forte repressão policial que se montou na região para que não acontecessem, fazendo-se representar com suas faixas, pirulitos, bandeiras e palavras-de-ordem. Esses 1º de Maio foram organizados com a participação de todas as forças que compunham o Comitê de Solidariedade e são sem dúvida importantes marcos das lutas dos trabalhadores naqueles anos.

Conclusões

Importantes desdobramentos da nova conjuntura inaugurada com o ascenso dos movimentos sociais, as greves dos metalúrgicos do ABC e seus “apoiadores” foram, sem dúvida alguma, a criação de uma articulação intersindical que passou a se reunir regularmente lançando bases para o surgimento da CUT; o desencadeamento de greves de grande número de categorias profissionais operárias, do setor de serviços (como funcionários públicos), de outros setores assalariados urbanos e mesmo no campo (como os canavieiros da Zona da Mata de Pernambuco ou os movimentos de bóias frias em São Paulo) em todo o Brasil.

Em termos de reflexão, é preciso ter em foco que, embora todas essas greves tenham contribuído para a derrubada da ordem da ditadura, muitas foram derrotadas em suas reivindicações específicas, pagando por isto um alto preço.

No plano sindical e político partidário, esse contexto geral de ascenso dos movimentos populares, sindicais e de oposição à ditadura forçará, como nos outros casos, concessões na abertura proposta pela direita no rumo da institucionalização do País, ampliando em muito os limites dessa abertura e delineando a futura reorganização nacional, com a legalização dos partidos comunistas (PCB e Pc do B), outros de matriz socialista ou trabalhista (como o PSB e PDT), a criação do Partido dos Trabalhadores, e das centrais sindicais de trabalhadores, que não existiram no Brasil sequer antes de 1964.

Essas decorrências coroam e qualificam – com suas conquistas, impasses e derrotas – a luta pela mais ampla liberdade de organização e manifestação da classe trabalhadora, travada naqueles anos, durante os quais a esquerda – embora não tenha hegemonizado o processo – o disputou política e ideologicamente, a cada momento, junto à massa, contra os conservadores e a direita. O que aconteceu naquele momento terá importantes desdobramentos que se consolidarão no melhor do que foi aprovado na Constituinte de 1987-1988, mas esta já é outra história.

Fevereiro de 2000