O público que vê tudo isso de longe não compreende nada. O que é que é? Um movimento revolucionário? – Mas tudo está tão calmo…
Um movimento reivindicatório? – Mas por que tão profundo, tão geral, tão forte e tão súbito?…
Quando certas imagens se aprofundaram no espírito, no coração, na própria carne, compreeende-se. Compreeende-se logo. É só deixar que as lembranças venham à tona.”

Simone Weil, França, 1936 (“A condição operária”)

 Vinte e dois anos depois, as greves metalúrgicas de 1978 são parte da História contemporânea do Brasil. E não apenas pelo tempo decorrido desde então.

Surpreendidos todos pela força e expressividade da onda grevista que eclodia após 10 anos de aparente silêncio da classe trabalhadora brasileira, e em meio a um quadro político fortemente autoritário, nos perguntávamos: “por que se moveram? Por que São Bernardo? Como explicar que essas greves houvessem surgido justamente no pólo então mais dinâmico da economia brasileira, no setor produtivo que fora o coração do “milagre brasileiro” e fossem protagonizadas por trabalhadores que estavam entre os mais bem pagos do país?

Vinte e dois anos depois, o que justificaria voltar a contar a história dessa greve (e do processo que a ela conduziu)?

Foi uma greve por 20% de aumento salarial imediato, mas que encerrou em si uma demanda muito mais ampla: a da recuperação da dignidade dos trabalhadores. Foi uma greve surgida em um setor bastante específico (as empresas automobilísticas de São Bernardo), mas que imediatamente se irradiou: em primeiro lugar para os metalúrgicos paulistas, e, em segundo lugar, para amplos e diversificados contingentes da classe trabalhadora brasileira, em um poderoso ciclo grevista que chegou a atingir, nos dois anos seguintes, mais de 4 milhões de trabalhadores nas mais diversas regiões do país.

Foi uma greve na qual os trabalhadores, assim como o haviam feito os estudantes em 1977, conseguiram afirmar uma subjetividade coletiva diante do Estado autoritário e do despotismo empresarial vigentes; e, dessa forma, ampliar os limites do possível, não apenas para si mesmos, como também para o conjunto dos setores populares e democráticos do país.

Por isso São Bernardo não se transformou em um “enclave”, como havia ocorrido com tantas outras experiências históricas de greves ou movimentos coletivos surgidos em setores economicamente importantes e protagonizados por trabalhadores que possuíam graus elevados de organização. A capacidade de irradiação da greve contrariou muitos analistas da época, que viam nos metalúrgicos de São Bernardo uma nova expressão da “aristocracia operária”, ou de um movimento corporativista desvinculado, devido à sua situação relativamente privilegiada, dos interesses, condições, necessidades e identidade do conjunto da classe trabalhadora brasileira.

O que ocorreu nesse caso foi exatamente o contrário. A greve, surgida nas empresas mais modernas da região mais industrializada do país, transformou-se rapidamente em símbolo, referência e estímulo para categorias tão diversas como de trabalhadores da construção civil de Belo Horizonte e de canavieiros de Pernambuco, de professores e de jornalistas, de coveiros e de bancários, entre tantas outras. O ciclo grevista iniciado em maio de 1978 não só se desenvolveu praticamente sem interrupções durante os dois anos seguintes como significou a irrupção dos trabalhadores na cena política no período pós-64, forçando a ampliação dos projetos de “abertura” que até então haviam sido formulados pelos representantes do regime. Esteve na base da criação da CUT e do PT, na transformação da “República de São Bernardo” no principal símbolo, não apenas da combatividade operária, como de todo o movimento democrático do país, na projeção de Luís Inácio Lula da Silva como a principal liderança política popular do Brasil contemporâneo.

Sem dúvida a força desse processo, gestado na segunda metade dos anos 70, é um dos elementos que podem explicar a situação relativamente especial do movimento sindical brasileiro nos anos 80 e início dos 90, se comparado aos seus similares no resto da América Latina e inclusive em muitos países europeus. Nesses anos de crise e globalização, de modernização tecnológica e reestruturação produtiva, o movimento sindical brasileiro não sofreu o retrocesso, o processo de fragmentação e o recolhimento a posições defensivas ocorrido em muitos outros países. Pelo contrário. Apesar das muitas dificuldades que teve e tem que enfrentar continuou buscando novos caminhos; em meio a um prolongado e contraditório processo de transição e consolidação democrática, conseguiu projetar-se como um sujeito na cena pública e foi reconhecido como interlocutor em muitos espaços, de maneira talvez inédita na história brasileira. Os metalúrgicos do ABC sempre estiveram na vanguarda desse processo.

Vinte anos depois, o mundo do trabalho não é mais o mesmo. Em 1980, a fábrica da Volkswagen em São Bernardo tinha 42.000 empregados. Os trabalhadores da indústria automobilística correspondiam a mais de 70% dos trabalhadores industriais da cidade e estavam altamente concentrados em algumas poucas grandes empresas. Hoje a Volkswagen emprega, em todo o país menos de 30 mil trabalhadores. Somente entre 1987 e 1996 foram suprimidos quase 40% dos postos de trabalho que compunham a categoria dos metalúrgicos de São Bernardo. Nenhuma das plantas automobilísticas, com instalação prevista no país, produto dos novos investimentos realizados a partir de 1996, se localizará na região do ABC. Os principais argumentos empresariais: no ABC a mão de obra é muito cara e os sindicatos são muito conflitivos.

Estes dados refletem as dificuldades atuais. São algumas das expressões da forma pela qual os atuais processos de globalização e reestruturação produtiva estão atingindo a estrutura industrial e a classe trabalhadora brasileira: aumento do desemprego, principalmente industrial, precarização do trabalho, terceirização espúria. Os desafios hoje são outros e talvez mais complexos.

Isso estaria significando o esgotamento do “modelo sindical” que emergiu em São Bernardo a partir do final dos anos 70?

Não há dúvidas que esse modelo foi gestado em uma situação histórica e social bastante peculiar. Ele surge em uma etapa que corresponde ao auge de dois processos (e que antecede imediatamente o início da suas respectivas crises). Em primeiro lugar, o processo de industrialização por substituição de importações. O Brasil foi o país latino-americano melhor sucedido na concretização dessa estratégia[1]. Os anos 70, em especial, foram anos de intenso crescimento do produto e do emprego industrial, de intensa modernização da indústria e da classe trabalhadora brasileira. No final desse período, ao contrário do que aconteceu em muitos outros países, havia se produzido uma coincidência entre o pólo mais dinâmico do processo de acumulação e o setor mais avançado do movimento sindical. Ambos estavam localizados no ABC. Isso sem dúvida conferia possibilidades muito especiais ao sindicalismo que aí ressurgia, não apenas em termos da sua força, capacidade de mobilização e negociação, como também quanto a sua expressividade social. O mesmo poderia ser dito de outras categorias de trabalhadores, como, por exemplo, os bancários e petroquímicos.

Em segundo lugar, o final dos anos 70 corresponde também ao auge do desenvolvimento do que poderia ser chamado de um “fordismo periférico”. Em outras palavras, de um modelo de organização produtiva, cuja espinha dorsal eram grandes empresas integradas verticalmente e concentradas territorialmente, e de um modelo autoritário e rotinizado de gestão da força de trabalho. Por mais heterogênea que fosse naquela época a configuração da estrutura produtiva e, conseqüentemente, da classe trabalhadora brasileira, pode-se pensar que era mais fácil (do que seria hoje) projetar a possibilidade de um sindicalismo “à la São Bernardo” para o conjunto da classe trabalhadora (ou para amplos contingentes desta).

O atual processo de reestruturação produtiva aumenta muito essa dupla heterogeneidade, dificultando, talvez, a possibilidade dessa projeção e identificação. Mas o que chama a atenção na experiência do sindicalismo do ABC é justamente a capacidade que este vem demonstrando, ao longo dos últimos 20 anos, de exercer sua criatividade e sua capacidade de luta, de dar saltos, de inventar novos caminhos, exatamente quando a situação parece estar chegando a um ponto de estrangulamento.

Em cada um desses momentos, sem abandonar nunca seu esforço no sentido de aprofundar os processos de negociação no interior das empresas, ao mesmo tempo, o sindicalismo do ABC tenta projetar sua ação para novos espaços e novos temas, assim como sua capacidade de interlocução para novos atores. Isso aconteceu em 1991/92 com a experiência da Câmara Setorial da Indústria Automotiva e está acontecendo agora com o processo de constituição da Câmara Regional do Grande ABC, no qual o sindicato tem participado ativamente visando contribuir para a discussão de alternativas e para a formulação de acordos que tenham como objetivo não apenas o futuro da indústria automobilística, como o desenvolvimento econômico e social do conjunto da região.

Por isso o sindicalismo do ABC não envelhece. A experiência vivida na origem – e reproduzida nas distintas conjunturas que se sucederam desde então – está fortemente relacionada a essa capacidade inovadora e renovadora, combativa e negociadora, analítica e propositiva do sindicalismo do ABC.

Falar da greve de 1978 hoje não é sucumbir à nostalgia de um passado já relativamente distante. Não é apenas falar de uma experiência peculiar ocorrida em um espaço e um tempo muito singulares. É refletir sobre um momento histórico (e como este houve muitos) no qual se produziram experiências significativas que passam a incidir fortemente nos cenários onde se configuram e se decidem questões chaves de uma dada sociedade. É refletir sobre como podem nascer e renascer, surgir e ressurgir atores sociais, subjetividades e vontades coletivas, imaginários potentes e inovadores em momentos onde aparentemente domina a repressão, a atomização, o isolamento e a desesperança.

Nesses tempos de flexibilização selvagem é muito importante voltar a examinar como foram conquistados e reconquistados, no período recente, alguns dos direitos básicos dos trabalhadores brasileiros. Antes que a Constituição de 1988 consagrasse a jornada de 40 horas semanais, essa já era praticada nas empresas metalúrgicas de São Bernardo como resultado das negociações coletivas ali desenvolvidas.

Naquela época os trabalhadores tinham que se defrontar com uma enorme desproporcionalidade de forças representada pelo estado autoritário (pela ditadura militar), e pelos imperativos do “milagre econômico” (aumentar a produção e atender aos mercados em expansão). Como se verá a seguir, o caso brasileiro, é um exemplo claríssimo de como o crescimento econômico não é nenhuma garantia de equidade ou justiça social, ou, nas palavras de Lucio Kowarick (1983) como é um “notável e funesto exemplo de capitalismo que associou crescimento e pobreza”. Mas era também um capitalismo que criava grandes empresas, concentrava e modernizava a classe trabalhadora, expandia o emprego. Daí vinha a possibilidade de força objetiva, mas que só se transformou em capacidade de transformar as condições vividas porque houve um esforço sistemático, prolongado, paciente, corajoso, inovador, de muitos homens e mulheres.

Hoje os trabalhadores se enfrentam com a lógica – aparentemente inexorável – da globalização, da necessidade de aumentar a produtividade das empresas para enfrentar padrões de competitividade cada vez mais exigentes. Em nome dessa lógica, se assiste a uma ofensiva de destituição de direitos, o trabalho se precariza, o emprego industrial se reduz. Muitos temas permanecem sem solução, surgem outros problemas. Qual é a diferença do que acontecia há 20 anos atrás?

A democracia, sem dúvida é a grande diferença. A dignidade reconquistada. A existência de uma referência: a experiência de lutas, a memória coletiva. Esse é um grande patrimônio.

[1] No início dos anos 80, a estrutura industrial brasileira era bastante complexa, diversificada e se caracterizava por um alto grau de integração intersetorial, resultado de um intenso processo de crescimento que teve seu auge na década de 70, quando o PIB industrial cresceu a uma taxa média de 9,5% ao ano(Coutinho e Ferraz, 1994).

Abril de 2000

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“Enfim se respira! Greve dos Metalúrgicos!
O público que vê tudo isso de longe não compreende nada. O que é que é? Um movimento revolucionário? – Mas tudo está tão calmo…
Um movimento reivindicatório? – Mas por que tão profundo, tão geral, tão forte e tão súbito?…
Quando certas imagens se aprofundaram no espírito, no coração, na própria carne, compreeende-se. Compreeende-se logo. É só deixar que as lembranças venham à tona.”

Simone Weil, França, 1936 (“A condição operária”)

 Vinte e dois anos depois, as greves metalúrgicas de 1978 são parte da História contemporânea do Brasil. E não apenas pelo tempo decorrido desde então.

Surpreendidos todos pela força e expressividade da onda grevista que eclodia após 10 anos de aparente silêncio da classe trabalhadora brasileira, e em meio a um quadro político fortemente autoritário, nos perguntávamos: “por que se moveram? Por que São Bernardo? Como explicar que essas greves houvessem surgido justamente no pólo então mais dinâmico da economia brasileira, no setor produtivo que fora o coração do “milagre brasileiro” e fossem protagonizadas por trabalhadores que estavam entre os mais bem pagos do país?

Vinte e dois anos depois, o que justificaria voltar a contar a história dessa greve (e do processo que a ela conduziu)?

Foi uma greve por 20% de aumento salarial imediato, mas que encerrou em si uma demanda muito mais ampla: a da recuperação da dignidade dos trabalhadores. Foi uma greve surgida em um setor bastante específico (as empresas automobilísticas de São Bernardo), mas que imediatamente se irradiou: em primeiro lugar para os metalúrgicos paulistas, e, em segundo lugar, para amplos e diversificados contingentes da classe trabalhadora brasileira, em um poderoso ciclo grevista que chegou a atingir, nos dois anos seguintes, mais de 4 milhões de trabalhadores nas mais diversas regiões do país.

Foi uma greve na qual os trabalhadores, assim como o haviam feito os estudantes em 1977, conseguiram afirmar uma subjetividade coletiva diante do Estado autoritário e do despotismo empresarial vigentes; e, dessa forma, ampliar os limites do possível, não apenas para si mesmos, como também para o conjunto dos setores populares e democráticos do país.

Por isso São Bernardo não se transformou em um “enclave”, como havia ocorrido com tantas outras experiências históricas de greves ou movimentos coletivos surgidos em setores economicamente importantes e protagonizados por trabalhadores que possuíam graus elevados de organização. A capacidade de irradiação da greve contrariou muitos analistas da época, que viam nos metalúrgicos de São Bernardo uma nova expressão da “aristocracia operária”, ou de um movimento corporativista desvinculado, devido à sua situação relativamente privilegiada, dos interesses, condições, necessidades e identidade do conjunto da classe trabalhadora brasileira.

O que ocorreu nesse caso foi exatamente o contrário. A greve, surgida nas empresas mais modernas da região mais industrializada do país, transformou-se rapidamente em símbolo, referência e estímulo para categorias tão diversas como de trabalhadores da construção civil de Belo Horizonte e de canavieiros de Pernambuco, de professores e de jornalistas, de coveiros e de bancários, entre tantas outras. O ciclo grevista iniciado em maio de 1978 não só se desenvolveu praticamente sem interrupções durante os dois anos seguintes como significou a irrupção dos trabalhadores na cena política no período pós-64, forçando a ampliação dos projetos de “abertura” que até então haviam sido formulados pelos representantes do regime. Esteve na base da criação da CUT e do PT, na transformação da “República de São Bernardo” no principal símbolo, não apenas da combatividade operária, como de todo o movimento democrático do país, na projeção de Luís Inácio Lula da Silva como a principal liderança política popular do Brasil contemporâneo.

Sem dúvida a força desse processo, gestado na segunda metade dos anos 70, é um dos elementos que podem explicar a situação relativamente especial do movimento sindical brasileiro nos anos 80 e início dos 90, se comparado aos seus similares no resto da América Latina e inclusive em muitos países europeus. Nesses anos de crise e globalização, de modernização tecnológica e reestruturação produtiva, o movimento sindical brasileiro não sofreu o retrocesso, o processo de fragmentação e o recolhimento a posições defensivas ocorrido em muitos outros países. Pelo contrário. Apesar das muitas dificuldades que teve e tem que enfrentar continuou buscando novos caminhos; em meio a um prolongado e contraditório processo de transição e consolidação democrática, conseguiu projetar-se como um sujeito na cena pública e foi reconhecido como interlocutor em muitos espaços, de maneira talvez inédita na história brasileira. Os metalúrgicos do ABC sempre estiveram na vanguarda desse processo.

Vinte anos depois, o mundo do trabalho não é mais o mesmo. Em 1980, a fábrica da Volkswagen em São Bernardo tinha 42.000 empregados. Os trabalhadores da indústria automobilística correspondiam a mais de 70% dos trabalhadores industriais da cidade e estavam altamente concentrados em algumas poucas grandes empresas. Hoje a Volkswagen emprega, em todo o país menos de 30 mil trabalhadores. Somente entre 1987 e 1996 foram suprimidos quase 40% dos postos de trabalho que compunham a categoria dos metalúrgicos de São Bernardo. Nenhuma das plantas automobilísticas, com instalação prevista no país, produto dos novos investimentos realizados a partir de 1996, se localizará na região do ABC. Os principais argumentos empresariais: no ABC a mão de obra é muito cara e os sindicatos são muito conflitivos.

Estes dados refletem as dificuldades atuais. São algumas das expressões da forma pela qual os atuais processos de globalização e reestruturação produtiva estão atingindo a estrutura industrial e a classe trabalhadora brasileira: aumento do desemprego, principalmente industrial, precarização do trabalho, terceirização espúria. Os desafios hoje são outros e talvez mais complexos.

Isso estaria significando o esgotamento do “modelo sindical” que emergiu em São Bernardo a partir do final dos anos 70?

Não há dúvidas que esse modelo foi gestado em uma situação histórica e social bastante peculiar. Ele surge em uma etapa que corresponde ao auge de dois processos (e que antecede imediatamente o início da suas respectivas crises). Em primeiro lugar, o processo de industrialização por substituição de importações. O Brasil foi o país latino-americano melhor sucedido na concretização dessa estratégia[1]. Os anos 70, em especial, foram anos de intenso crescimento do produto e do emprego industrial, de intensa modernização da indústria e da classe trabalhadora brasileira. No final desse período, ao contrário do que aconteceu em muitos outros países, havia se produzido uma coincidência entre o pólo mais dinâmico do processo de acumulação e o setor mais avançado do movimento sindical. Ambos estavam localizados no ABC. Isso sem dúvida conferia possibilidades muito especiais ao sindicalismo que aí ressurgia, não apenas em termos da sua força, capacidade de mobilização e negociação, como também quanto a sua expressividade social. O mesmo poderia ser dito de outras categorias de trabalhadores, como, por exemplo, os bancários e petroquímicos.

Em segundo lugar, o final dos anos 70 corresponde também ao auge do desenvolvimento do que poderia ser chamado de um “fordismo periférico”. Em outras palavras, de um modelo de organização produtiva, cuja espinha dorsal eram grandes empresas integradas verticalmente e concentradas territorialmente, e de um modelo autoritário e rotinizado de gestão da força de trabalho. Por mais heterogênea que fosse naquela época a configuração da estrutura produtiva e, conseqüentemente, da classe trabalhadora brasileira, pode-se pensar que era mais fácil (do que seria hoje) projetar a possibilidade de um sindicalismo “à la São Bernardo” para o conjunto da classe trabalhadora (ou para amplos contingentes desta).

O atual processo de reestruturação produtiva aumenta muito essa dupla heterogeneidade, dificultando, talvez, a possibilidade dessa projeção e identificação. Mas o que chama a atenção na experiência do sindicalismo do ABC é justamente a capacidade que este vem demonstrando, ao longo dos últimos 20 anos, de exercer sua criatividade e sua capacidade de luta, de dar saltos, de inventar novos caminhos, exatamente quando a situação parece estar chegando a um ponto de estrangulamento.

Em cada um desses momentos, sem abandonar nunca seu esforço no sentido de aprofundar os processos de negociação no interior das empresas, ao mesmo tempo, o sindicalismo do ABC tenta projetar sua ação para novos espaços e novos temas, assim como sua capacidade de interlocução para novos atores. Isso aconteceu em 1991/92 com a experiência da Câmara Setorial da Indústria Automotiva e está acontecendo agora com o processo de constituição da Câmara Regional do Grande ABC, no qual o sindicato tem participado ativamente visando contribuir para a discussão de alternativas e para a formulação de acordos que tenham como objetivo não apenas o futuro da indústria automobilística, como o desenvolvimento econômico e social do conjunto da região.

Por isso o sindicalismo do ABC não envelhece. A experiência vivida na origem – e reproduzida nas distintas conjunturas que se sucederam desde então – está fortemente relacionada a essa capacidade inovadora e renovadora, combativa e negociadora, analítica e propositiva do sindicalismo do ABC.

Falar da greve de 1978 hoje não é sucumbir à nostalgia de um passado já relativamente distante. Não é apenas falar de uma experiência peculiar ocorrida em um espaço e um tempo muito singulares. É refletir sobre um momento histórico (e como este houve muitos) no qual se produziram experiências significativas que passam a incidir fortemente nos cenários onde se configuram e se decidem questões chaves de uma dada sociedade. É refletir sobre como podem nascer e renascer, surgir e ressurgir atores sociais, subjetividades e vontades coletivas, imaginários potentes e inovadores em momentos onde aparentemente domina a repressão, a atomização, o isolamento e a desesperança.

Nesses tempos de flexibilização selvagem é muito importante voltar a examinar como foram conquistados e reconquistados, no período recente, alguns dos direitos básicos dos trabalhadores brasileiros. Antes que a Constituição de 1988 consagrasse a jornada de 40 horas semanais, essa já era praticada nas empresas metalúrgicas de São Bernardo como resultado das negociações coletivas ali desenvolvidas.

Naquela época os trabalhadores tinham que se defrontar com uma enorme desproporcionalidade de forças representada pelo estado autoritário (pela ditadura militar), e pelos imperativos do “milagre econômico” (aumentar a produção e atender aos mercados em expansão). Como se verá a seguir, o caso brasileiro, é um exemplo claríssimo de como o crescimento econômico não é nenhuma garantia de equidade ou justiça social, ou, nas palavras de Lucio Kowarick (1983) como é um “notável e funesto exemplo de capitalismo que associou crescimento e pobreza”. Mas era também um capitalismo que criava grandes empresas, concentrava e modernizava a classe trabalhadora, expandia o emprego. Daí vinha a possibilidade de força objetiva, mas que só se transformou em capacidade de transformar as condições vividas porque houve um esforço sistemático, prolongado, paciente, corajoso, inovador, de muitos homens e mulheres.

Hoje os trabalhadores se enfrentam com a lógica – aparentemente inexorável – da globalização, da necessidade de aumentar a produtividade das empresas para enfrentar padrões de competitividade cada vez mais exigentes. Em nome dessa lógica, se assiste a uma ofensiva de destituição de direitos, o trabalho se precariza, o emprego industrial se reduz. Muitos temas permanecem sem solução, surgem outros problemas. Qual é a diferença do que acontecia há 20 anos atrás?

A democracia, sem dúvida é a grande diferença. A dignidade reconquistada. A existência de uma referência: a experiência de lutas, a memória coletiva. Esse é um grande patrimônio.

[1] No início dos anos 80, a estrutura industrial brasileira era bastante complexa, diversificada e se caracterizava por um alto grau de integração intersetorial, resultado de um intenso processo de crescimento que teve seu auge na década de 70, quando o PIB industrial cresceu a uma taxa média de 9,5% ao ano(Coutinho e Ferraz, 1994).

Abril de 2000

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