Com as greves, um sindicato de massa
" Os operários nem se dirigiram para suas fábricas. Durante a preparação anterior haviam eleito 400 representantes para uma comissão de salários (…)"
Por Éder Sader
No ano de 1979 aquela onda grevista atingiria seu auge, estendendo-se pelas mais diversas categorias e por todo o território nacional. Mas, também, durante esse ano, o governo se preparou para contê-la. Na verdade, já a maioria das greves ocorridas nesse ano terminaria sem conquistas econômicas, e às vezes com derrotas significativas. Havia, no entanto, uma rebeldia presente na sociedade e que aproveitava a “distensão política” para expressar-se. A continuidade da “transição controlada” requeria a freagem desse processo.
Em novembro é decretada uma reforma na legislação salarial, determinando reajustes semestrais com magnitudes diferentes segundo as faixas salariais. Os que recebiam até 3 salários mínimos receberiam 10% a mais do que o índice de preços; entre 3 e 10 salários mínimos receberiam o correspondente ao índice de preços, acima de 10 receberiam 80% do índice de preços. Anualmente os salários seriam aumentados segundo os índices de produtividade de cada setor. Nunca ninguém soube explicar como seria medido esse índice de produtividade, mas na prática o importante foi que os conflitos trabalhistas passariam a se dar em torno da fixação desse montante, diminuindo a margem de discrepâncias. O governo pretendia com isso desestimular novos movimentos grevistas. Para aqueles que insistissem, a repressão seria mais dura, como se revelaria nesse mesmo mês em São Paulo.
No entanto, em São Bernardo, no momento da campanha salarial de 1980, a disposição grevista seria ainda maior. A politização anunciada no ano anterior se firmaria nesse. E a categoria alcança um nível de organização muito maior. Quando a greve foi decretada, a maioria das empresas parou sem a presença dos piquetes. Os operários nem se dirigiram para suas fábricas. Durante a preparação anterior haviam eleito 400 representantes para uma comissão de salários que atuou na verdade como um amplo comitê de mobilização, organizando o movimento pelas bases.
Os metalúrgicos de São Bernardo permaneceram 41 dias em greve, enfrentando a firme decisão governamental de não transigir em nada. No dia seguinte foi solicitado ao Tribunal a decretação da ilegalidade do movimento. Mas este julgou-se incompetente para tanto e ainda propôs um reajuste que já significaria uma conquista em termos econômicos. A categoria recusou a proposta, porque considerava que suas reivindicações principais eram aquelas que assegurariam alterações de qualidade nas próprias condições de ação da classe: a estabilidade no emprego durante um ano, o reconhecimento de delegados sindicais, a redução da jornada de trabalho. Faziam assim de reivindicações que interessavam o conjunto dos assalariados o centro de sua luta. Com isso, davam um outro conteúdo social à luta democrática em curso no país.
Tanto o governo quanto as direções das grandes empresas pretendiam justamente sufocar essa ameaça. Mantendo a intransigência quanto à eventualidade de reabertura de negociações, conseguem que, na segunda semana, os sindicatos de Campinas e de São Caetano se retirem da greve. No dia 13 uma empresa de São Bernardo faz um acordo em separado, saudado com entusiasmo pelos grevistas, que viram aí uma fissura na “frente patronal” e um sinal de que as empresas menores não poderiam agüentar mais e pressionariam as grandes. Pelo contrário, o que aconteceu então foi uma imponente ofensiva antigrevista comandada pelo governo. Dia 15 o Tribunal decretou a ilegalidade do movimento. O Ministério do Trabalho mandou emissários a empresários do setor com orientações no sentido de não negociarem com os grevistas e com a oferta de financiamentos que compensariam as dificuldades decorrentes da paralisação. No dia 18 os sindicatos de São Bernardo e Santo André são postos sob intervenção. Ainda assim, a greve se mantinha. No dia 19, a imprensa calculava que 80% dos trabalhadores continuavam parados. No dia 20 começam as prisões da liderança sindical e de outras figuras oposicionistas. Dia 21 são proibidas manifestações públicas no Estádio e no Paço Municipal. Enquanto a polícia ocupava as ruas, dissolvia aglomerações, provocando um clima de tensão, porta-vozes governamentais e empresariais se esforçavam em desmoralizar o movimento com referências à situação “privilegiada” dos metalúrgicos do ABC.
Procuravam, efetivamente, desfazer o bloco de apoio que se constituíra em torno da greve. Nos bairros de toda Grande São Paulo formavam-se comitês de apoio à greve. Aquelas organizações que expressavam a “sociedade civil” em oposição ao regime militar – Ordem dos Advogados, Comissão de Justiça e Paz, entidades estudantis, sindicatos, organizações de mulheres, de negros, de artistas – assumiram a luta dos metalúrgicos do ABC como sua. A Igreja ofereceu todo o apoio para a agilização do fundo de greve. A paralisação, que fora declarada ilegal, foi considerada legítima pelo bispo da região, dom Cláudio Hummes, e pelo cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo, provocando um sério atrito com o governo.
Com a greve de 1980, o movimento realmente extravasou de seus objetivos econômicos. Ele enfrentou o regime esboçando uma alternativa dos trabalhadores para a transição em curso. Passaria a haver um outro sujeito político no cenário público.
* Este texto integra o livro “Quando novos personagens entraram em cena – experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-1980”, publicado pela editora Paz e Terra/RJ, em 1988, p.308-310.