"Esse é o movimento histórico mais importante e fecundo da hora brasileira"

Por Mário Pedrosa

Tenho acompanhado com o mais vivo interesse sua atuação no movimento operário e, mais recentemente, no Congresso dos Trabalhadores na Indústria realizado nesta Capital. Por isso, valho-me desta carta para lhe testemunhar minha alegria de velho militante socialista pela firmeza, lucidez e combatividade que você demonstrou no transcurso dos trabalhos.

Sei que você, cuja liderança vem tomando vulto de norte a sul do país, no movimento da classe operária brasileira, não gosta muito de manifestações de intelectuais na vida sindical. Compreendo e respeito sua ojeriza nesse sentido, pois a história desse movimento operário, principalmente no Brasil, está recheada de exemplos de salamaleques, tapinhas nas costas e outros tipos de engodo, com que certos “intelectuais”, mormente em vésperas de eleições, procuram bajular os trabalhadores. Felizmente desses trejeitos nunca sofri, muito menos, hoje, nessa idade em que não se é mais candidato a nada, a não ser a continuar fiel às idéias da mocidade. Esta fidelidade às idéias é que me faz escrever-lhe esta carta e precisamente na qualidade de intelectual. Para que? Dar-lhe conselhos? Positivamente não. Um jovem militante de sua têmpera, de sua inteligência, de seu devotamento, não é produto feliz do acaso. É um produto necessário da classe operária emergente da nova sociedade brasileira. Formou-se você em São Paulo, no coração mesmo dessa nova classe. Estou certo que outros como você se estão formando pelo Brasil todo, aos milhares, certamente às centenas; breve, estou certo, vamos todos tomar conhecimento deles. Já se ouve o reboar desse movimento de classe que sobe das profundezas da terra de Piratininga para os sertões, do Prata ao Amazonas. Esse é o movimento histórico mais importante e fecundo da hora brasileira.

Posso agora sorrir e predizer que o Brasil será um país feliz: a hora da emergência da nova classe operária e da emergência de um Brasil novo, liberto afinal da opressão, coincide. Quando Karl Marx, meu mestre, proclamou no século passado que “a emancipação dos trabalhadores seria obra dos próprios trabalhadores” – esta verdade não se apagou mais da história. Que tinha ele diante dos olhos? Um capitalismo em ascensão, um proletariado em andrajos, e Augusto Bebel, um operário alemão autêntico, como você, fundando o partido operário social-democrático alemão, que iria ser através dos tempos o partido modelo de toda a classe operária européia, inclusive para Lenine na Rússia bárbara dos czares. Quando em 1914 abriu-se a matança inter-imperialista na Europa, e Lenine e Trotsky puderam arrancar a Rússia do massacre, derrubando o czarismo, e com uma audácia nunca vista tentaram implantar a primeira república dos Conselhos (Soviéticos); essa república, fundada apenas que fora numa heróica minoria da classe operária de Leningrado e Moscou, cidades do vasto império russo, a República dos Soviets não tardou porém a cair como a Comuna de Paris, e, em seu lugar, implantou-se a ferro e a fogo uma ditadura burocrática totalitária, com grandes realizações, sem dúvida, no seu acervo (sobretudo de ordem industrial e militar) mas imensos sacrifícios para o povo russo e seus camponeses e, até hoje, sem nenhuma liberdade.

No Brasil um outro panorama começa a levantar-se; de onde parte? De um regime burotécnico-burguês-militar que trouxe, com alguns reais progressos, maior miséria e ainda maior opressão. Quais são as forças motrizes da nova situação, capazes de convocar o povo, mobilizá-lo, guiá-lo pacificamente para uma Assembléia Nacional Constituinte, eleita soberanamente pelo povo? Esta classe operária que você se empenha, com seus companheiros de trabalho, em organizar em sindicatos livres da tutela do Estado, com plena autonomia, direito de greve, contratos coletivos de trabalho e uma luta intransigente contra o peleguismo.

A emenda à Constituição que Fernando Henrique Cardoso, candidato ao Senado Federal pelo MDB, acaba de enviar à Presidência do MDB para que o seu Partido a leve ao plenário do Congresso Nacional é a iniciativa mais radical e profunda de quantas a oposição ao atual regime já apresentou. Com ela o Professor Fernando Henrique Cardoso marcou a diferença entre 1945-46 e 1978, isto é, entre a crise do fim da Segunda Guerra e do Estado Novo e a atual, em que se assistem os primeiros signos da agonia do sistema burocrático-militar que nos governa desde 1964. Em 1945-46, os democratas, liberais e socialistas chegaram a impor ao candidato anti-Estado Novo que levantasse a bandeira da democracia em sua totalidade, pois, na luta pelas liberdades democráticas, ali estavam também o direito de greve e a liberdade e a autonomia sindical em face do Estado que, como se sabe, na legislação fascista do Estado Novo, eram proibidas e davam cadeia aos que as preconizassem. A Constituição de 1946 conseguiu o direito de greve, mas quanto à liberdade e autonomia sindical, os liberais e a força de esquerda de 46 já não puderam regulamentar de maneira positiva os belos princípios democráticos inscritos no texto mesmo da Carta Constitucional. E desde então a democracia de 46 ficou capengando e os sindicatos operários atravessaram os anos sem autonomia, amarrados ao Estado, em pleno peleguismo, até a submissão final em que o salário deixa de ser o atributo essencial do trabalhador e seu sindicato para ser da exclusiva competência da alta burocracia do Estado e alguns dos seus pelegos, tanto os vindos da própria classe trabalhadora como outros vindos também do patronato.

O caminho vinha afinal sendo liberto para a democracia. Desta vez não se vai deixar pela estrada os restos da gangrena ditatorial subsistentes nos tecidos da democracia, como em 1950. Líderes políticos novos, como Fernando Henrique Cardoso, estão alertas e entregam ao seu Partido, o Partido da Oposição, os meios para extirpar esses cancros da legislação sindical, já agora com a garantia de que o cerne da luta pela emancipação do operariado do Estado, com suas velhas inclinações fascistas, não será esquecido e assim se criarão as condições ideais para que afinal surja da luta pela redemocratização do Brasil um movimento operário realmente profundo, livre, nitidamente trabalhista, dentro do qual todas as forças populares legítimas vão se unir para um só ramal: o socialismo: o Movimento dos Trabalhadores pelo Socialismo. Cunha-se assim, com a naturalidade das coisas elementares, o partido da consciência proletária de que você e seus companheiros estão imbuídos. Isso é penhor do futuro: fruto das tradições dos mestres, nutrido do sangue dos nossos heróis proletários. Sem a libertação do movimento trabalhista é inútil falar-se em liberdade, democracia ou socialismo.

Saudações proletárias do velho companheiro.
Rio, 1º de agosto de 1978

 

Carta de Mário Pedrosa, publicada no livro "Sobre o PT", editado pela CHED editorial, São Paulo, 1980.

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